4. A Caçadora do Coração

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 🌻 Capítulo 4 🌻

Muitas pedrinhas escuras margeavam a pequena ilha. Ana sentiu-as sob seus pés, ainda na água, quando finalmente atravessou todo o lago-espelho. As pedras acabavam em uma encosta, e toda a ilha era coberta de árvores, plantas e rochas. Ana logo viu uma estreita trilha que a levaria mata adentro. Muitos pássaros cantavam e voavam pelo lugar, na qual ela passou a chamar de Ilha dos Pássaros — pois, logo quando a menina chegou, muitos pássaros começaram a cantar; como se lhe desejasse boas-vindas.

Ana começou a caminhar pela trilha, ouvindo e vendo outros pequenos animais — não só animais, mas outras criaturas que ela nunca tinha visto antes: Pequenos (muito pequenos mesmo) homens de chapéu correndo por entre troncos e pedras, criaturinhas quase transparentes e aladas voando ao redor das flores e outros seres que apareciam e desapareciam por entre árvores e plantas. A menina queria poder vê-los mais de perto, mas eles eram tão rápidos e sumiam tão depressa que seus olhos não conseguiam acompanhá-los. Ela continuou andando, sem pressa, pois queria observar tudo ao redor e tentar ver mais nitidamente as criaturinhas que, para as pessoas, só existiam nos livros de fantasia para crianças. Para Ana, entretanto, que sempre acreditou que muitas coisas eram possíveis, toda aquela aparição não era uma surpresa. Estava tão admirada com tudo aquilo — e tentando acompanhar os homenzinhos que corriam depressa, mas sem se aproximar — que não percebeu quando chegou a uma modesta clareira. Ela parou, tentando adaptar sua visão àquele novo lugar. Seus olhos se arregalaram de imediato quando viu outra criatura — dessa vez, um homem muito grande — sentado em um trono feito de galhos e folhas. Dessa vez, não era um homem comum como aquele que Ana encontrou no bosque verde: este, para o seu espanto, não era totalmente humano. Da cintura para baixo, havia pernas peludas e cascos fendidos. Na cabeça, ele portava grandes chifres de cervo e orelhas pontudas. Apesar do tamanho (mesmo sentado, ele parecia ser muito mais alto que um adulto), o homem chifrudo tinha olhos verdes e gentis. Havia folhas trançadas em sua barba castanha, e seus cabelos eram longos e ondulados.

O homem com chifres olhou para ela, sorridente, e ergueu uma espécie de cajado que segurava na mão.

— Criança! — ele exclamou, sua voz grave e poderosa reverberando pela clareira — Eu já a esperava há algum tempo. Seja bem-vinda, pequena e graciosa menina. Espero que tenha tido uma ótima travessia.

Ana olhou por cima dos ombros por um momento, desconfiada. Qualquer coisa, ela sairia correndo pela trilha que entrara, e queria se certificar se continuava lá. No entanto, o homem não parecia ser nada do mal, pois muitas criaturas e animaizinhos rodeavam seus pés e sua cabeça — inclusive, uma andorinha parecia querer fazer um ninho na cabeça do homem, posando em um dos seus chifres e jogando folhas secas e penugens sobre seus cabelos.

— Que lugar é esse? — foi a primeira coisa que Ana disse. Ela não sabia se olhava ao redor, para o homem ou para o pássaro que rodeava sua cabeça.

— Que lugar é esse...? — o homem com cascos se recostou no trono, colocando seu cajado de lado. — Ora, eu achei que soubesse. Um bosque!

— Eu sei que é um bosque — Ana replicou, pensativa. — Um bosque em uma ilha... Acho que eu estou sonhando.

— Está com medo, minha filha ?— ele perguntou, analisando-a. — Diga-me se está com medo, e eu saberei que não é a criança que salvará o prisioneiro de seu martírio. Não posso lhe dar passagem se estiver com medo.

— Eu não estou com medo — a menina afirmou, dizendo a verdade. Apesar da pergunta, o homem sabia a resposta. Ele podia sentir, com suas narinas poderosas, seu olhar aguçado e sua intuição, o medo e o desespero em cada criatura.

— Então venha cá — o homem ergueu o braço. Ana deu um passo à frente para se aproximar dele, que pegou em sua mão gentilmente. As mãos deles eram tão grandes que faziam as mãozinhas de Ana ficarem ainda menores. Ele passou o dedo pela sua pequena palma e disse: — Tens razão, querida. Você não tem medo. É a Caçadora do Coração! Mas, antes de ir, devo-lhe dizer algumas coisas...

— Caçadora do Coração? — ela perguntou. — Eu não sou uma caçadora...Não sei caçar nada, e nem corações. Eu não gosto quando as pessoas caçam e matam e...

— Oh, não se trata de matar — ele a interrompeu. — Trata-se de viver. Os ventos nunca erram, garotinha. Se eles a trouxeram, e você não sente o medo, devo permitir que siga o caminho.

— Que caminho? — Ana perguntou, cada vez mais curiosa.

— O caminho para o coração do homem amargurado — ele disse. — O pobrezinho está preso há milênios... Alguém deve libertá-lo de sua tribulação.

— Você não pode soltar o homem? — Ana perguntou. — Você é um homem grande e com chifres, e eu sou uma criança. Mamãe vai ficar brava comigo se eu não voltar logo.

O homem ficou calado por alguns instantes, com um tênue sorriso no rosto barbado. Seus joviais olhos verdes brilhavam. Não parecendo considerar as preocupações de Ana, ele continuou:

— Como eu estava dizendo, devo alertá-la sobre este caminho: Pode ser perigoso — ele diminuiu o tom de voz: — O homem amargurado pode corrompê-la. Pode fazê-la desistir, recusando amparo, pois prefere viver com seus potes de comida, com sua cama de palha e pensamentos ambiciosos. Não o deixe convencê-la de que tudo isso basta! Mas, para que tudo ocorra bem, você precisa de sua aprovação. Para isso, precisa enganá-lo... Só assim o caminho irá se abrir.

— Eu não estou entendendo nada — Ana murmurou.

— Pois irá entender, criança — o homem chifrudo afirmou, levantando um dedo para que um passarinho pudesse pousar. Ele admirou a ave enquanto prosseguia: — No momento em que ver o homem, saberá as respostas! A mim, só me cabe lhe mostrar a passagem. No entanto, preciso que me diga: irá a esta caçada ou não?

Ana queria repetir que não sabia caçar, e que não poderia libertar ninguém de lugar nenhum pois não tinha chaves, não tinha armas; era apenas uma criança de sete anos. Mas a curiosidade foi maior que a sua hesitação. Ela queria saber quem era aquele prisioneiro que o homem-cervo tanto falava; e o porquê de estar tão amargurado. A menina não gostava de ver pessoas amarguradas e tristes.

— Sim. — ela concordou, e, segundos após sua resposta, o homem ergueu mais uma vez seu cajado. Uma trilha se abriu naquela direção.

— Boa sorte, menina — o homem falou. — Não tema, a terra a guiará. Salve o homem!

Ana sorriu para o homem-cervo e, sem se aguentar de tanta curiosidade, correu em direção ao novo caminho.

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