O retorno do passado

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Francisco Hades era o pior tipo de lixo que existia na face da Terra. Ele era controlador, possessivo, autoritário e acima de tudo, preconceituoso, mas de alguma forma ele era conhecido por ser um bom pai. Eu não posso negar, Nico e suas irmãs realmente sempre tiveram de tudo e nunca lhes fora negado ou faltara nada, mas a dor emocional que vinha com isso era esmagadora. Foi o primeiro relacionamento tóxico que eu presenciei de perto, antes disso eu nunca tinha conseguido entender por que as pessoas não conseguiam sair deles.

Hades amava os filhos, de uma forma doentia. Ele se preocupava ao extremo com tudo e qualquer coisa, e por conta disso privou seus filhos de conhecer o mundo... Nico, Bianca e Hazel cresceram com problemas sérios de ansiedade e dificuldades de sociabilização. Viver com Hades era viver pisando em ovos. Ele era instável e deprimido, com acessos de raiva exacerbados. Na maior parte das vezes que visitava sua casa as coisas estavam tranquilas, eles quase pareciam uma família feliz, o problema era aquelas poucas vezes... Hades não era recatado, ele gritava e dava bronca na frente de quem quer que fosse e se estivesse em um mau dia ele conseguia fazer quem quer que fosse se sentir um grande saco de bosta.

Quando eu ia em sua casa Nico parecia sempre aterrorizado, como se esperasse que algo desse errado e seu pai surtasse, mas ao mesmo tempo, quando Hades estava de bom humor ele sorria e beijava o pai. "Ele é meu pai, é claro que eu amo ele!". Nico demorou muito para entender e aceitar que não se é obrigado a amar a própria família, e isso o destruiu.

Nico cresceu cercado de ideais distorcidos, de alguém que viveu em uma época muito diferente e não conseguia aceitar que os tempos mudaram. Ele tinha que ser um homem e homens não choram, homens não fazem tarefas domésticas, homens trabalham desde cedo para ajudar a família e homens acham esposas para se casarem. "Esses homossexuais são uma doença!"

Lembro de estar junto dele jantando quando o pai dele comentou isso conosco, de forma casual, após passar em um programa de televisão um casal homossexual. Eu nunca tinha visto Nico chorar tanto... foi nesse dia que ele me contou sobre a sua sexualidade. Seu rosto dizia que aquela não era a primeira vez que ele ouvira aquela frase vinda da boca de seu pai. Aquele dia eu chorei sozinho em casa depois de ter tentado consolar o meu amigo de algo que não tinha consolo.

Conforme foi crescendo ele foi percebendo que tinha voz própria, e foi quando as coisas começaram a desandar. Hades não gostava de ser contrariado "na minha época os filhos respeitavam os seus pais!". Nico tinha tamanho suficiente para brigar e se posicionar então tinha tamanho para apanhar. Não acho que Hades tivesse pleno conhecimento de sua força, porque um tapa seu quebrava facilmente um adolescente miúdo e magrelo como Nico.

Mas já era tarde, não importava o quanto batesse, Nico tinha aprendido a rebater. Ele não entrava em briga física com seu pai, mas respondia tudo, se defendia, não engolia nada. Não demorou muito para que Hades surtasse e em um de seus momentos de fúria o expulsasse. Nico fez suas malas e saiu gritando porta a fora "só para constar, EU SOU GAY!".

Aquele dia Nico chorou de novo, até o rosto inchar e o nariz ficar com uma coriza nojenta e inconveniente. Eu nunca tinha visto o Nico tão feliz antes. Nós havíamos feito planos durante anos sobre morarmos juntos, mas eram sonhos distantes, Nico não tinha coragem de abandonar o pai, aquele que sempre "cuidou" de si e muito menos suas irmãs... o que elas fariam sozinhas com aquele homem? O fato de ele não ter tido que tomar essa decisão foi a melhor coisa que o havia acontecido. Era normal um adolescente se sentir aliviado por ser expulso de casa? Pois era o que eu via em seu rosto, puro alívio.

Minha família tinha dinheiro e eu consegui convencer minha mãe facilmente sobre comprar um apartamento para mim, desde que eu conseguisse sobreviver por mim mesmo depois disso. Eu consegui um emprego, e trouxe Nico para morar comigo. A expulsão de Nico acabou se tornando um grande marco não só na sua vida, mas na minha. Eu havia dado o primeiro passo para a minha independência, e ele para a sua liberdade.

De tempos em tempos Hades ligava, Nico ignorava e acabava aí. Era a primeira vez que eu o via tentando algo mais do que isso. A verdade é que eu gostaria de tacar café fervendo na sua cara sem nem ouvir o que lhe trazia aqui.

- Nico não está. – Foi o que consegui cuspir. – Não que minha resposta fosse ser diferente mesmo que estivesse.

Hades era um homem bonito. Envelhecera bem, tanto que não costumava aparentar a idade que tinha, algo bem diferente de agora. Sua barba estava por fazer (algo que nunca tinha visto antes) e ele possuía olheiras e rugas marcantes que começavam a denunciar sua idade.

- Eu sei. Vi quando ele saiu. – Ele parou um tempo parecendo decidir o que falar, ou talvez estivesse tentando lidar com a imagem de seu filho saindo de mãos dadas pelas ruas com outro cara. – Fiquei muito tempo tentando decidir se entraria ou não e quando percebi já tinha perdido minha chance. Aqui é o único lugar que conseguiria falar com Nico sem ele me expulsar. – Ele soltou um suspiro sôfrego, e se eu não o conhecesse, estaria sentindo pena do pobre senhor, mas pelo contrário, algo queimava em minha garganta. – Preciso que me ajude a falar com ele.

- Não! – Eu não tive nem que pensar na resposta, e ele parecia esperar pela mesma.

- Por favor... pelo menos me escute antes. Podemos conversar a sós? – Perguntou em tom de súplica e seu olhar desviou para Connor/Travis que claramente ouvia tudo que conversávamos.

Eu não queria conversar, mas ao mesmo tempo não queria expor a vida de Nico para toda a cafeteria, uma vez que Hades parecia que não desistiria tão cedo, então concordei. Permiti que passasse pela divisória dos funcionários e entrasse em nossa minúscula copa – eu definitivamente não passaria frio para conversar com esse homem então sair estava fora de questão – e mandei um aviso a Connor/Travis. Esperava que ele entendesse tudo que estava subentendido naqueles gestos confusos "cuide da cafeteria enquanto isso, não ouse se aproximar para escutar a conversa e não ouse comentar sobre isso com ninguém, muito menos Nico!".

- Eu não sabia. – Hades demorou quase dez minutos para começar a falar, e só começou porque eu ameacei sair da sala. Dez minutos para soltar algo mixuruca e sem nexo como isso.

- O que você não sabia? – Tentei ser paciente como costumava ser com pessoas decentes.

- Eu não sabia que Nico era gay, ele nunca me contou nada. Se soubesse nunca teria dito aquelas coisas... – Acho que incrédulo é uma palavra um pouco sutil para o estado em que eu me encontrava. – Nico é meu filho e eu o amo independente dele ser gay ou não. Aquele dia eu estava nervoso, tinha parado com a medicação, eu falei coisas sem pensar, eu o expulsei... – ele parecia a beira do choro. Eu só queria socá-lo.

- Você não tinha como saber e Nico não tinha como te contar. Não depois de ter ouvido inúmeras vezes... – Eu não conseguia completar uma frase de tão nervoso que estava. – O negócio é, não é uma doença! Nico ama homens e daí? Você não pode vir aqui e tentar se justificar de forma tão podre, porque para começo de conversa você não deveria falar esse tipo de merda.

Ele calou a boca. Era a primeira vez em muito tempo que eu me exaltava tanto. Eu gritava, indo totalmente contra o meu plano original de ser discreto sobre a situação. O que raios era aquela situação? Fazia anos e agora do nada ele decidia que queria ser um pai de novo?

- Eu preciso falar com ele. Por favor! – Hades chorava. Não me afetei, já havia presenciado a mesma cena inúmeras vezes antes. Era o que costumava fazer Nico voltar atrás em todas as suas decisões de se mudar. Hades gritava, xingava, avançava e então quando parava para respirar ele chorava, culpado, como se a culpa fosse sempre do outro e ele fosse a eterna vítima. Era digno de pena? Era, mas não da minha.

- Pois se vire sozinho, se Nico estiver preparado para aceitar falar contigo então o fará. Mas você precisa tomar vergonha na cara e ir pedir isso diretamente a ele. Não te faltou coragem para expulsá-lo, então busque essa coragem para falar com seu filho, mas se ele se negar, você não irá insistir entendeu? Você não tem direitos aqui! – Não sei como, mas consegui controlar o volume da minha voz, embora sentisse todo o meu corpo tremer. Depois disso fiz com que se retira-se da copa e ele foi embora sem dizer mais nada. 

Akai ItoOnde histórias criam vida. Descubra agora