Protocolo de autodestruição

132 17 0
                                    


Segunda-feira amanheceu com a melhor temperatura da última semana e minha saúde física agradeceu muito por isso – a mental também uma vez que Jason aliviou bastante sua síndrome parental com isso. Ainda tinha resquícios de neve pelas ruas. Jason e eu andávamos em direção ao café desviando atrás das filetas de sol que se abriam, elas não esquentavam propriamente, mas era um calorzinho gostoso.

O café teve uma movimentação alta pela manhã – o que resultou em uma queimadura leve em Jason que se atrapalhou com a máquina em meio a agitação – mas caiu bastante com o passar do dia. Quando Will chegou para me buscar havia apenas um casal finalizando seus bolinhos e Connor falou que eu poderia ir na frente que ele fechava. Jason já havia ido embora – ele dormiria na Piper essa noite, teria algo como um jantar em família.

- Seu namorado sabe que ele pode te esperar aqui dentro, né? – Ele perguntou. Pelo jeito a fofoca corria solta entre os irmãos, porque eu tenho certeza que quem trabalhava no dia em que eles se conheceram era Travis.

- Ele não é meu namorado. – Respondi. – Ainda. – Completei.

- Fala sério, existem sentimentos dentro de você. Que lindo cara. – Ele gritou em sua melhora atuação dramática enquanto eu ia para dentro trocar de roupa. O casal de clientes xingou com o susto. – Boa noite Nico! – outro berro. – Se divirtam! – mais um. – E se protejam!! – O último se projetou através da noite quando eu abri a porta para sair. Não tinha como Will não ter escutado. Ou a vizinhança toda, afinal fazia um silêncio mórbido com o cair da noite.

Sério Connor, se os clientes vierem reclamar para o dono sobre o quão escandaloso e barulhento você é, dessa vez eu não vou te defender.

- Por que não entrou? – Perguntei enquanto caminhava em sua direção. Ele esperou que eu chegasse para responder, me abraçando e sussurrando no meu ouvido.

- Tem um cara estranho ali atrás que fica encarando a cafeteria, eu estava esperando para ver se ele ia embora, mas continua ali. – Apontou discretamente por cima de seu ombro para um canto da rua. Era a única pessoa ali a essa hora além de nós, definitivamente suspeito, e eu infelizmente o reconheci.

- Quando você vê alguém suspeito você corre ou entra em um lugar com testemunhas. – Murmurei de volta, enquanto o impedia de afastar o abraço. – Sério, é assim que pessoas morrem em filmes de terror.

- Nico? – Sua voz era preocupada.

Com o passar dos anos e com a distância tornando-se cada vez maior, eu me convenci pouco a pouco de que meu passado havia sido enterrado em um lugar que eu não teria mais contato. Em algum momento as lembranças pararam de emergir, os pesadelos diminuíram e os sentimentos se aquietaram, dando uma trégua na constante sensação de sufocação. Por conta disso, eu realmente acreditei que havia superado. Que apesar da ansiedade ser incontrolável, eu conseguiria pelo menos manejar a sensação de afogamento e conter o terror que muitas vezes já havia petrificado meus ossos. Inocentemente eu achei que meu pai já não me afetaria de forma a me desestruturar como fazia antes, mas lá estava eu, a metros de distância dele, tremendo como se tivesse acabado de sair de um lago congelado em meio a uma nevasca.

Apertei Will o mais forte que consegui, procurando um abrigo que me esquentasse, que parasse os tremores. Ele retribuiu, enroscando seus dedos em meus cabelos enquanto escondia meu rosto em seu peito. Pedi ajuda a Percy e ele respondeu imediatamente, me inundando com um calor gentil e sua preocupação genuína. Dois dias seguidos e eu quase ri com o pensamento de que faria minha alma gêmea infartar se seguisse esse fluxo.

Não sei quanto tempo ficamos dessa forma – enquanto eu tentava regular o meu sistema simpático com Will esfregando meus cabelos de forma quase desesperada, sussurrando meu nome e repetindo "está tudo bem, eu estou aqui com você" – mas notei que talvez fosse tempo demais quando ouvi o barulho da porta do café e a voz do casal de clientes desejando boa noite a Connor. Eu já não tremia mais, então decidi me afastar. Vi pela visão periférica o casal andar na direção contrária que eu e Will iríamos e inevitavelmente notei que meu pai continuava ali, agora me encarando.

Ao encarar Will eu tive que reprimir o choro. Seus olhos eram preocupados, curiosos e gentis. Suas mãos repousaram em meus ombros, massageando-os em silêncio. Ele não iria perguntar, ele iria me esperar. A primeira lágrima desceu por pura teimosia. Contra a minha vontade minha mente começou com seu processo de autossabotagem, sussurrando dentro de mim "quantos ataques seus você acha que ele vai aguentar antes de ir embora?". A segunda lágrima desceu. Olhei para meu pai e voltei a olhar para Will. Percebi que ele acompanhou meus movimentos e sua feição era de alguém que tentava desesperadamente resolver um quebra-cabeça das quais as peças não possuía.

Meus ouvidos começaram a zumbir. Um apito agudo que se distanciava e então voltava a aproximar-se. Há algum tempo atrás eu fui ao otorrinolaringologista para ver o que isso significava e depois de dois testes de audiometria e algumas outras hipóteses descartadas, concluiu-se que era devido a ansiedade. O zumbido aparecia em momentos em que eu tinha picos de estresse, quando minha mente estava tão cheia que eu me sentia vazio, incapaz de focar em algo. Eu recebi indicações de remédios fitoterápicos para ansiedade e me ensinaram alguns exercícios de respiração para que eu pudesse me acalmar. Eu não tinha remédio nenhum comigo então foquei nos olhos azuis na minha frente com o intuito de fazer os exercícios quando Will quebrou meus planos.

- Amor. – Só isso, uma única palavra sem contexto, razão ou maior elaboração. Will Solace me chamou e de alguma forma foi como se tivesse puxado meu espírito de volta para a Terra.

Meu pai sempre foi ótimo em estragar todas as pequenas coisas que me traziam alegria, mas eu definitivamente não o deixaria estragar isso. Eu conhecia mais um jeito de acalmar a minha mente, um que a deixava completamente em branco. Também sem contexto, razão ou maior elaboração eu segurei o rosto lindo e preocupado na minha frente e beijei a boca gostosa que nele habitava. Beijei até que esquecesse meu próprio nome, porque não tinha como um dia ter sido outro que não "amor" cantado pela voz de Will Solace.

E Will Solace estava uma bagunça quando nos afastamos e eu só podia imaginar como que eu estava. Olhei para o lado e meu pai ainda estava lá, embora não mais me encarasse. Minha mente clareou. Os zumbidos pararam.

- Aquele cara estranho ali é o meu pai super homofóbico que depois de anos decidiu reaparecer na minha vida. Jason me avisou sobre isso ontem, por isso a minha crise, mas eu não esperava encontra-lo tão cedo por isso que meu corpo decidiu ativar o protocolo de autodestruição. – Expliquei para Will.

- Você quer falar com ele? – Perguntou entrelaçando nossas mãos. Ele parecia ainda meio desconcertado por conta do beijo, um dos mais intensos que tivemos e que eu acabei de soltar que havia sido na presença do meu pai, the homofóbico.

- Não.

- Tudo bem, eu vou avisá-lo. Você fica aqui esperando que nós já vamos para casa. – E assim ele se encaminhou em direção ao meu pai.

Eu fiquei observando de longe. Era a primeira vez que eu via expressões tão irritadas e duras no rosto de Will. Meu pai gesticulava enquanto falava e eu pude escutar de onde estava um "não" bem firme que cortou seu repertório.

- Nico, eu só quero conversar, por favor! – Ele gritou, se levantando e girando o corpo em minha direção, decidindo por ignorar a presença de Will.

- Mas ele não quer. – Will se interpôs entre nós, bloqueando a vista e encarando meu pai diretamente. – Se um dia ele quiser, ele sabe onde te encontrar. Agora por favor, pare de rondar esse lugar e o deixe em paz.

Sem aguardar por uma resposta, Will se virou e caminhou até mim, agarrando minha mão e guiando o nosso caminho até minha casa. Olhei para trás uma última vez e pude ver lágrimas em seu rosto, meu pai chorava enquanto me olhava indo embora.

- Tudo bem, eu vou esperar! – Gritou. – Venha até em casa, a sua casa, quando você estiver pronto!

***

Will dormiu em casa naquela noite. Ele cozinhou e eu me senti a vontade para dividir minha história com ele enquanto comíamos. Ele era um bom ouvinte e fazia comentários mordazes sobre o meu pai que eram extremamente divertidos. Já no meu quarto decidimos continuar assistindo a nossa série (sim, a semi-tortura de 11 temporadas havia se tornado a nossa série) e nos aconchegamos juntinhos na cama.

- Sabe, camas de solteiro tem definitivamente suas vantagens. – Comentou. 

Akai ItoOnde histórias criam vida. Descubra agora