Capítulo VII: Mente fértil? Talvez não...

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Os legistas terminaram de examinar o corpo às duas da manhã. John estava acordado a base de café e Simon finalmente pôde suspirar ao fim de mais um trabalho.
O corpo estava aberto do peito à barriga, mostrando um estômago lesionado, e a maioria dos órgãos, cobertos por um estranho líquido negro, espesso, que cheirava a ovo estragado, substância coletada para exame. O único diagnóstico que Simon  havia conseguido explicar foi a úlcera avançada daquele estômago, cuja dor faria o preso gritar durante todo o tempo em que era submetido ao interrogatório, mas não conseguia entender o porquê de Jason não tê-lo feito, nem apresentado sintomas durante todo o período em que fora condenado. A fuligem de seus ossos, aparentemente queimados há muito tempo a ponto de esfarelar-se ao toque, também foi coletada. Aquilo foi o que mais lhe assombrou, pois o rapaz permanecia de pé, sem fratura alguma até o dia de sua morte, além de, também, não haver indícios de queimaduras na pele ou na carne. Combustão espontânea, talvez? Em quinze anos de experiência como necropsista, nunca havia presenciado algo parecido com aquele caso, o que o fez questionar sua capacidade como profissional, apenas por não conseguir relatar algum diagnóstico plausível.

_Preciso do laboratório para avaliar estas amostras. - Ofegante e trêmulo, coletou parte do intestino e do tecido, contaminados pelo fluido anormal, que já pingava na maca. Conforme instruído, seu auxiliar anotava cada detalhe na prancheta, sabendo que levaria uma surra se esquecesse cada mínima palavra do que acontecera ali, depois, era só esperar o laboratório retornar com uma explicação lógica; negligenciar aquele caso não era uma opção e todo mundo sabia disso.

O caso Jason Britch foi documentado em diversas emissoras de televisão, comentado em inúmeras plataformas internet afora... seria questionável a chance de deixarem escapar toda aquela fama momentânea pela qual o Departamento estava passando; embora fosse doentio imaginar que estavam se aproveitando pelas costas de uma equipe que enlouqueceu com o evento.
No fim, a pele de Jason foi costurada, coberta e posta em uma das gavetas do necrotério com sua identificação no dedão do pé direito.

_Anotou todas as informações? - Disse, fechando a gaveta com uma mão, ainda com luvas, e limpando o pouco suor de sua testa com as costas da outra.

_Hã? Sim, está tudo aqui.

_Ótimo, preciso que leve as amostras para o laboratório amanhã de manhã, enquanto eu fico encarregado de levar o relatório para o Departamento.

_Tudo bem.

A atmosfera no lugar estava sombria, como nunca antes; talvez este fosse o motivo de ambos se calarem na maior parte do tempo e um dos responsáveis pela expressão abatida dos profissionais. Simon ainda pensava no que havia acontecido no começo do estudo, não conseguia tirar aquele evento na cabeça, por mais que repetisse para si ser apenas um pesadelo acordado. Estava tão perdido em seus pensamentos que mal percebeu seu colega de trabalho se despedindo e o deixando só, com o corpo do prisioneiro. 

_"O ritual dos ossos precisa parar"... Qual seria o significado disso? Que ritual? - murmurou.

Ainda quase catatônico, separou suas roupas casuais e retirou seu uniforme para se banhar, algo nada revigorante, quando se está cogitando a possibilidade de existir um fantasma bem ali ao seu lado. Não era muito crente nesta questão, mas o medo excessivo daquele lugar, em pouco tempo, fazia acreditar em qualquer coisa mórbida que fosse atormentar ainda mais sua mente.
É irônico pensar que um médico teria medo do seu próprio local de trabalho; riria disso, caso a vítima não fosse ele, e como era, pôs-se a cantarolar qualquer música que viesse em sua cabeça... entretanto, dentre seus devaneios, só se repetia uma música em seu pensamento, jamais ouvida, que deu lugar a murmúrios baixos, finalmente se materializando em palavras.

"Agapiméni kai vlákas mou
Afíno edó to kassítero mou
O prínkipas tou peirasmoú, me katanalónei..."

Entoando continuamente o mesmo verso, mal conseguiria ouvir o ranger do metal se não desligasse o chuveiro para se enxugar.

_John? Esqueceu alguma coisa?

Sem resposta. Embora quisesse manter uma ideia positiva de que poderia ser apenas uma alucinação devido ao cansaço, seu corpo denunciava o medo, com as mãos agarradas à toalha, imóvel e ofegante, esperando o surgimento do próximo barulho para identificar o que estava acontecendo. O fato de que poderia ser algum evento sobrenatural o assustava, ainda mais daquele grau, porém, não mais do que estar completamente sem rumo, sem saber o que pensar, como reagir e de onde a ameaça estava vindo; àquele nível, estava completamente irracional, de modo que sequer percebeu sua nudez ao sair do cubículo bem iluminado.
A gaveta de Jason estava aberta; o legista, pálido, se aproximava a passos lentos para fechar a pequena porta. Jurava tê-la fechado antes.
Suando frio, se adiantava. Os pés lutando para se mover, enquanto a ansiedade tomava conta. A respiração entrecortada dificultava o balbuciar de qualquer palavra que passasse em sua mente para pedir ajuda ou misericórdia.
Devagar, se aproximou e olhou a gaveta, onde descansava o corpo, intocado, apenas com a gaveta aberta.
Soltou um suspiro aliviado, ao mesmo tempo que fechou os olhos. Estava a salvo. Tinha medo de abri-los e não achar Jason deitado, mas atrás de si, como nos filmes clichês de terror, ou de ver algo que não queria além do corpo frio enfiado naquele pequeno espaço.
Abriu-os novamente e ele ainda estava lá. Sempre teve um certo receio em trabalhar como legista, afinal, corpos morrem, mas suas almas permanecem. Já ouvira coisas antes, mas fez questão de culpar sua mente imaginativa demais, assim como estava culpando agora por ver Jason, o homem que ele acabara de abrir e costurar, piscar as pálpebras e tornar a estampar aquele maldito sorriso na cara que deu tanto trabalho para tirar.

As lágrimas finalmente caíram, se misturando ao suor recente, assim como seus sentimentos misturavam-se entre o genuíno horror e a raiva, tentando bater a gaveta com força e sendo impedido pelos joelhos do cadáver que tornara a abrir e sentar-se nela; logo, levantou-se como um boneco de pano, curvado para frente, com os braços pendendo, pernas tortas devido aos inúmeros ossos frágeis quebrados com seu peso e o líquido preto escapando pelo vão da sutura no abdômen, algumas gotas escorrendo por sua virilha recém-tricotomizada e outras, pingando pela ponta de seu prepúcio. Seu corpo encontrava-se diante de outro homem nu aterrorizado a ponto de urinar no chão e tentado a reagir violentamente, se não lhe queimasse o peito, faltasse ar ou embaçasse sua vista até o corpo desfalecer no piso aquecido por sua urina.

Continua...

The Ritual Of Bones - Volume IIOnde histórias criam vida. Descubra agora