"(...) umas doze horas de sono te cairiam bem"

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[ALERTA DE GATILHO: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA IMPLÍCITA!! NÃO LEIA SE FOR SENSÍVEL A ISSO!!]

     Eu senti calor em meio à escuridão.

     Não era como aquele calor insuportável dos dias de verão. Era na medida certa, um calor que vem com um sentimento de afeição e carinho.

     Percebi que o calor emanava de braços delicados e um corpo relativamente maior que o meu. Ele rodeava-me com cuidado.

     Quando ouvi uma risada gostosa e doce, soube exatamente quem era. O cafuné que recebi só serviu para confirmar minhas suspeitas.

— Gostou do passeio de hoje, Gen? — questionou, falando meu nome como se fosse a coisa mais especial do mundo.

     Alguma coisa martelou em meu peito, como quando arrancam algo precioso de você e o lugar dessa coisa fica vazio até que ela seja recuperada, e ardia como o próprio inferno.

     Talvez ardesse tanto porque eu jamais veria minha mãe novamente.

— Adorei, mamãe! — uma vaga voz infantil respondeu — Eu adoooro fazer coroas de flores p'ra você!

     Ela tinha o cabelo no exato tom de preto que eu tenho. Seus olhos conseguiam ser mais azuis que os meus, iguais ao céu impossivelmente lindo da minha primeira ida à praia. Suas mãos eram calejadas e ásperas pelo trabalho doméstico e como bordadeira, mas seu toque era cuidadoso, como se eu fosse o bordado mais lindo e complexo do mundo.

     Ela foi a única pessoa que já amei na vida, e a única que um dia amou o desastre que sou.

     Ouvi uma porta se abrindo e alguém esbarrando e tropeçando em tudo. O calor vacilou. O abraço se afrouxou.

     Gritos. Vidro quebrando. Cinto colidindo com a carne. Choro histérico e copioso. Portas batendo. Maldições sendo proferidas. Uma criança fugindo para o cubículo que chamava de quarto.

— ESSA VAGABUNDA VAI VER SÓ QUANDO ELA VOLTAR! — ecoava a voz do homem que me deu a vida entre um soluço ou outro, acompanhado de madeira indo ao chão — ELA SEMPRE VOLTA PELO PIRRALHO INÚTIL! SEMPRE PELO DESGRAÇADO!

     Lembro-me de apertar a coroa de flores do parque contra o peito, buscando pelo calor de minha mãe.

     Lembro do arder dos olhos e pulmões de tanto chorar.

     Lembro da fome perdendo importância para o medo de sair de meu quarto e apanhar de meu progenitor.

     Lembro do raspar da garganta infernal ao chamar pelo nome de minha mãe depois de uma semana sem vê-la retornar.

     Lembro de surrupiar roupas dela, em busca de seu calor.

     Lembro de ter frio.

...

     Eu tremia quando acordei. Senti algo preso na garganta querendo sair, e não era vômito. Senti-me molhado da cabeça aos pés. Senti meus ossos congelarem e doerem.

     Eu senti.

     Senti algo.

     Quis deixar de sentir.

     Eu estava bem sem sentir coisas.

     Não sentir era não se machucar de novo.

     Por que eu estava sentindo? O Vazio cansou de mim?

      Bom, pelo menos ele ficou por um tempo. Me escolheu para atazanar. Ninguém me escolhe. Tipo, nunca. E não condeno ou julgo ninguém por isso. Eu também não me escolheria.

Boa pessoa [Gen Asagiri]Onde histórias criam vida. Descubra agora