"O inferno foi reinventado"

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— (...) Vai~, queridos! — pediu pelo que deveria ser a quinquagésima sétima vez em meia hora — Deixem eu terminar isso aqui e vocês vão poder brincar pelo resto do dia!

— Mas esses rabiscos não fazem sentido nenhum! — reclamou Sekiei ao esparramar-se pela mesa.

— A gente não vai usar isso p'ra caçar, pescar e tudo o mais. — Kesshō pontuou.

    Gen pediu paciência a qualquer ser extrafísico disposto a ajudá-lo. Por mais que a polícia em si ainda não estivesse de volta a ativa, matar pessoas é uma coisa errada e ele não saberia esconder um corpo.

— O Senku não vai precisar só de pescadores e caçadores. O Reino da Ciência vai precisar de um montão de gente com funções diferentes. — rebateu, chegando mais perto dos dois com um sorrisinho doce — E saber o que esses rabiscos significam é o mais essencial p'ra vocês aprenderem essas funções.

— Mas eles são chatos ... — resmungaram em conjunto.

— Sabe o que seria ainda mais chato? Todos os seus amiguinhos fazerem coisas tão legais quanto as que o Senku-chan faz e só vocês não saberem fazer por não quererem entender uns rabisquinhos de nada. — ampliou seu sorrisinho, o tom incisivo.

     Sekiei e Kesshō trocaram olhares arregalados. Pegaram seus pedaços de carvão e ajeitaram seus papéis.

— O que você 'tava dizendo, Gen-Sensei?

Melhor assim! — cantarolou, tornando a explicar a grafia do hiragana.

     Não foram mais nem quinze minutos de aula até que Asagiri liberasse as crianças. Elas saíram praticamente correndo.

     Isso não impediu que escutasse alguns sussurros de seus pupilos.

— Eu gostava mais dele quando não precisávamos estudar esses rabiscos estranhos. — Daiya confidenciou aos amigos.

— Ele nem deixa a gente brincar durante a aula ... — Kesshō sacou seu estilingue, pronto para acertar qualquer passarinho que tivesse a infelicidade de entrar em seu campo de visão.

— Ele assusta um pouquinho quando dá aula ... — Paru brincava com seu cabelo, nervosa.

    Ele deveria sentir dor. Ou tristeza. Ao menos, um pingo de culpa.

     Mas O Vazio engoliu seu coração.

     Não sabia se preferia o vácuo sufocante que estrangulava seu peito ou a dor e desespero e solidão da própria época de escola.

     "O pai dele é um charlatão. Deve ser igualzinho a ele!"

     Gen não o era na época. Não queria ser como a quem tanto odiava.

     "Fica longe do Asagiri! Vai que ele te manipula?"

     Gen não aguentava mais ser manipulado. Não queria que outros sentissem o que sentia.

     "As notas que ele tira devem ser altas só porque ele subornou os professores ou fez eles caírem na sua lábia ..."

     Gen passou muitas, muitas horas estudando para poder mostrar notas altas a sua mãe quando ela voltasse – seja lá quando seria isso.

     "Como eu posso saber se você não ' só mentindo, Cruella?"

     Gen só perguntou se poderia pegar anotações emprestadas da última aula. Por que ele mentiria numa situação idiota dessas? Tinha apenas doze anos.

     "Ele deve vir assim na escola, todo estrupiado, p'ra gente ter pena e depois tirar vantagem de nós que nem o pai dele faz!"

     Gen não queria a pena de ninguém. Nunca quis. Pena nenhuma tornaria sua vida menos miserável.

     "A sua mãe não vai voltar só porque você tirou dez na prova."

     Gen sabia disso, professor. Chorava toda noite com o peso dessa realidade.

     "O inferno foi reinventado", pensou. "E eu sou o criador desgraçado dele".

     Sua garganta parecia cheia de algodão e seu peito um abismo mortal. Sentia-se na corda-bamba entre o colapso e a sanidade.

     Nada novo sob a luz do Sol.

— Gen-Sensei, ajuda a Suika a fazer esse higanaka? — a menina embaralhou-se com a pronúncia do último termo.

     Uma âncora prendeu-se aos seus pensamentos e puxou-os de volta para a terra. Piscou com força.

— Claro, Suika-chan~! — vestiu um sorriso, que era quase idêntico ao seu verdadeiro.

— Gen-san, poderia me ajudar também? Ando tendo alguns problemas com os kanjis ... — Kinrou aproximou-se, papel e lápis e pincel e tinta em mãos.

— Sem problema nenhum! — alargou seu falso sorriso, a voz melodiosa quase enganando a si mesmo — Não sou muito bom ensinando, mas vou me esforçar até vocês pegarem o jeito!

— Mas a Suika acha que você é um bom professor, Gen-Sensei ...

— Sem dúvidas. — concordou, ajeitando seus óculos — Se não fosse assim, o Senku jamais teria dado essa tarefa a você. Seria ilógico.

     O Vazio tremeu. O sorriso falso de Gen vacilou.

     Mas ele continuou a sentir nada e nada e nada e solidão.

— Ora, assim vocês me deixam sem jeito~! — coçou a nuca, e até sentiu suas bochechas arderem por algum motivo — Bem, bem ... vamos tirar suas dúvidas, Queridos Pupilos~.

     Os dois continuaram estudando e perguntando por mais duas horas, atentos a cada palavra que o bicolor tinha a dizer.

     E o mencionado sentiu nada e nada e nada e solidão, tudo cortesia do Vazio.

Boa pessoa [Gen Asagiri]Onde histórias criam vida. Descubra agora