2 - Um poço sem fundo chamado azar

46 9 41
                                    

Não foi uma decisão fácil. Desde que Coral teve a ideia da fuga até aquele momento, várias coisas tiveram de ser providenciadas em tempo recorde, e ela só conseguiu relaxar minimamente quando o ônibus já estava há uns cinquenta quilômetros distantes de Salto Belo. A mochila com as roupas foi a parte mais fácil, já que para todos os efeitos ela estava indo para Monte Carmelo. No entanto, havia algumas perguntas que precisavam ser respondidas, como por exemplo, como ela iria para Santos? Onde se hospedaria? E com que dinheiro?

Não havia ônibus direto, Coral teria que ir primeiro para São Paulo, e de lá para Santos, mas isso não seria um problema desde que ela pegasse o primeiro no horário certo. Era uma sorte que já tivesse dezesseis anos completos e não precisasse mais de autorização para viajar sozinha. Já a hospedagem poderia ser resolvida se ela pudesse simplesmente ir para o apartamento da tia, mas era arriscado demais. Mesmo que tia Denise e os primos não estivessem indo para lá na semana que vem, o porteiro poderia dedurá-la e ela seria rapidamente mandada embora. Coral teria de se hospedar em algum hotel, não havia outra opção.

Resolvidas as questões preliminares, restava ainda a mais difícil: conseguir o dinheiro. Coral sabia que a tia sempre sacava uma boa quantia quando ia viajar, mas ela jamais daria alguma coisa para a garota, mesmo que ela implorasse. O jeito seria pegar sem que ninguém percebesse. Ela afirmou para si mesma que não se tratava de roubo, mas apenas uma pequena compensação por todos aqueles anos de desprezo e humilhação.

Com esse pensamento, Coral esperou até que todos estivessem reunidos em torno da mesa para o café da tarde — ninguém nunca dava por sua falta mesmo — para adentrar sorrateiramente pelo quarto da tia. Uma vez dentro, tateou pelos móveis, abriu gavetas, olhou debaixo da cama, até encontrar um compartimento escondido dentro do guarda-roupas, com um chumaço gordo de notas em meio a um mar de calcinhas e sutiãs. Ela contou mil reais e deixou o resto para disfarçar. Tomou o cuidado de deixar tudo como estava antes de sair.

Somente quando voltou ao quarto, com o coração acelerado em puro êxito, Coral começou a raciocinar se o dinheiro seria o suficiente. Gastaria em torno de duzentos reais com os dois ônibus, sobrando-lhe oitocentos para a hospedagem, locomoção e alimentação. Devia bastar.

Ela mal podia acreditar que seu plano tinha dado certo. Se a tia fosse uma pessoa que prestasse um pouco mais de atenção, poderia ter notado sua agitação anormal. Mas ela estava ocupada demais preparando a própria viagem para se dar conta do que ocorria debaixo do próprio nariz. Além disso, jamais imaginaria que sua sobrinha sem graça teria a ousadia de desobedecê-la daquela maneira.

Coral começou a rir sozinha dentro do ônibus, o coração se acalmando a cada quilômetro rodado. Pela primeira vez na vida, sentia-se verdadeiramente livre. Não fazia ideia de onde aquela ideia maluca a levaria, mas pelo menos teria o gostinho de fazer algo por si própria. Esse seria o seu presente de aniversário, a sua independência. O melhor presente que ela poderia ter.

A viagem até São Paulo correu tranquila e sem imprevistos. No entanto, Coral sentia uma pontada de tristeza por não ter avisado Téo e Emílio de sua partida. Ela achou melhor não levar o celular, para não correr o risco de ser rastreada pela tia. Além do mais, quanto menos pessoas soubessem de seu paradeiro, mais segura estaria.

Também não era como se eles fossem sentir sua falta por muito tempo. A verdade é que Coral sempre se sentiu uma intrusa entre eles, como se estivesse roubando uma amizade que não lhe pertencia. Esse sentimento de culpa vinha sobretudo pelo fato de Coral não conseguir se aproximar de Lavínia, a amiga mais antiga de Téo e Emílio, por mais que ela tentasse. A última coisa que ela queria era que Lavínia se sentisse ameaçada por ela, mas a garota era insegura e sofria de baixa autoestima, por isso acabou construindo um muro protetor intransponível em torno de si. Coral a entendia em partes, porque se sentia da mesma forma em relação às primas. Pelo menos agora, com o seu sumiço, eles poderiam voltar ao que eram antes de sua intromissão. Será como se eu nunca tivesse existido, ela pensou com tristeza.

Coral: A Ordem de PoseidonOnde histórias criam vida. Descubra agora