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Reflexões finais
GOSTARÍAMOS DE TERMINAR este livro com algumas reɻexões. Em primeiro lugar, sobre a
visão que temos do homem pré-histórico. Em segundo, sobre a história das populações
indígenas antes e depois da irrupção dos europeus no “novo continente”. Enɹm, sobre a
situação da arqueologia no Brasil.
Lutar contra
os mitos redutores
Aos poucos se vem corrigindo uma série de ideias errôneas, infelizmente enraizadas na
cabeça de muita gente – e às vezes ainda ensinadas nas escolas. Uma delas é que os
primeiros ocupantes do território que hoje chamamos Brasil, como qualquer homem pré-
histórico, teriam vivido num mundo frio e povoado por mamutes ou dinossauros.
Refugiando-se dentro de cavernas (mas também nômades, sem domicílio ɹxo), disporiam
essencialmente da pedra para fabricar seus instrumentos e passariam muita fome. Seriam
primitivos que ainda não imaginavam uma sociedade racionalmente organizada como a
nossa. Esta é, obviamente, uma fantasia oriunda das pesquisas realizadas na Europa no
século XIX, dentro de uma perspectiva evolucionista.
Com efeito, as regiões tropicais não conheceram glaciações durante o Pleistoceno, e os
mamutes – adaptados ao frio – nunca existiram no Brasil. Quanto a viver nas cavernas, teria
sido estúpido instalar-se em lugares escuros, pouco arejados e onde não se poderia fazer fogo
sem ɹcar defumado. Algumas populações utilizaram os abrigos bem abertos ou as entradas
de grutas, mas, mesmo assim, sobretudo para ɹns ritualísticos ou para preservação de
matérias perecíveis. Em geral, estabeleciam suas moradias a céu aberto. Por outro lado,
instrumentos de pedra são perfeitamente dispensáveis onde há recursos disponíveis
suɹcientemente variados, como vegetais, conchas e ossos. Os instrumentos de pedra foram
sempre uma minoria em regiões tropicais úmidas. Enɹm, em vez de formar grupos
numerosos, tornando difícil a obtenção de alimentos para todos, muitas populações
limitaram sua densidade, garantindo uma relativa abundância dentro de um território ɹxo,
cujos recursos eram perfeitamente conhecidos.
Por outro lado, em substituição ao mito (felizmente em declínio) do homem pré-histórico
bruto, ignorante e infeliz, está ressurgindo, entre os “intelectuais”, outro mito: o do “bom
selvagem” – hoje com matizes “ecológicos”. O índio passa então a ser visto como um ser
puro, vivendo em harmonia com uma natureza virgem e incapaz de agredir e fazer o mal,
um ser inocente ao qual se junta paradoxalmente a visão romântica do indômito guerreiro.
Recusando a desigualdade social, esse ser teria criado mecanismos para impedir o
surgimento de hierarquias opressoras (um livro famoso, do antropólogo Pierre Clastres,
intitula-se A sociedade contra o Estado). De novo a realidade arqueológica e histórica não
confirma essa visão.
Em primeiro lugar, é claro que há e sempre houve grande diversiɹcação dos gruposindígenas no vasto território brasileiro. Em consequência disso, houve também diferenças de
atitudes com relação à natureza. Manejo intenso da ɻoresta amazônica (que perdeu sua
virgindade há muitos milênios por obra dos seus “primitivos” habitantes), queima de matas
por grupos que preferem o cerrado; guerras para raptar mulheres e crianças, ou para
capturar inimigos a serem sacriɹcados ou incorporados à tribo; conquista de territórios –
todos esses fenômenos ocorreram, mesmo que de uma forma original em relação à história
europeia, o que não significa que não tenhamos nada a aprender com os indígenas.
De fato, tanto o primeiro mito (evolucionista) quanto o segundo (“anárquico-ecológico”)
falam de nós mesmos, mas nada ensinam absolutamente sobre as populações indígenas,
sejam elas atuais ou passadas. Apenas expressam nossas construções mentais e revelam os
nossos fantasmas. Mesmo que os arqueólogos não possam deixar de ser ɹlhos do seu tempo e
reproduzir seus preconceitos, eles têm o dever de tentar superá-los, procurando sempre as
diversas explicações possíveis – algumas delas ainda não pensadas – para os vestígios que
encontram. Humildade diante da realidade material que descobre, consciência da limitação
do registro arqueológico e da insuɹciência dos modelos propostos por nossa própria
sociedade, estas são as primeiras qualidades que o arqueólogo deve desenvolver.
Continuidades e rupturas vistas pelos acadêmicos
Uma das principais questões em debate atualmente é até que ponto as atuais populações e
sociedades indígenas se parecem com as dos últimos milênios antes da invasão europeia?
Somente a arqueologia poderá esclarecer esse aspecto. Mesmo assim, a questão está sendo
debatida de modo talvez inadequado, pois os pesquisadores discutem sobretudo numa
perspectiva ainda evolucionista, para saber se as populações da pré-história tardia
(particularmente, os Tupiguarani) eram numerosas o bastante para passar do “estágio tribal”
simples a outro patamar, o de “cacicado” – talvez já alcançado pelos Tapajós e Marajoara
(com desigualdades sociais e chefes com poderes relativamente importantes). O cacicado,
por sua vez, seria uma transição para o estágio de organização estatal (caracterizado pela
existência de uma burocracia).
Trata-se, evidentemente, de uma visão a posteriori, desenvolvida a partir da história
mediterrânea e europeia, e que supõe o Estado e a dominação econômica de certas
categorias socioeconômicas sobre outras uma fatalidade política a longo prazo. Essa
discussão deixa de lado várias características de diversiɹcação e hierarquização tipicamente
indígenas que são pelo menos tão importantes quanto as nossas formas tradicionais de
concentração de poder. Por exemplo, a divisão dual da sociedade, que encontramos entre os
grupos Jê tanto quanto nas populações andinas. Todas essas sociedade são formadas pela
união de dois grupos ao mesmo tempo antagônicos e complementares, e cujas relações
ritualizadas asseguram a continuidade do conjunto social. Mesmo entre os Tupi e os
Guarani, onde não há divisão dual entre os integrantes de uma mesma aldeia, a construção
da personalidade e a ma nutenção da coletividade se faz por intermédio do outro – o
adversário capturado e até ɹsicamente integrado. Habituados a uma divisão essencialmente
vertical da sociedade, não percebemos facilmente as divisões horizontais, que esquecemos
quando avaliamos o “grau” de complexidade dos outros e alcunhamos as tribos indígenas de
“sociedades simples”.
Outro exemplo seria o estabelecimento das redes de integração regional intertribais emmoldes que desconhecemos em nossa sociedade, que pratica a integração exclusivamente a
partir da absorção ou submissão dos “outros”. Por isso, procuramos essencialmente a
complexidade a partir da “desigualdade” de tratamento dos mortos (por exemplo, avaliando
num cemitério a “riqueza” do acompanhamento funerário – esquecendo que os objetos
mais preciosos, como as plumas, podem ter desaparecido). Mas não sabemos como
reconhecer as redes de integração entre populações vizinhas, porque vemos cada “unidade”
arqueológica como sede de uma etnia ou de uma tribo isolada.
De fato, as sociedades do Alto Xingu ou do alto rio Negro mostram como grupos com
origens e línguas diferentes, independentes do ponto de vista político, podem criar uma
unidade reforçada periodicamente por rituais de integração, casamentos e uma divisão do
trabalho entre “tribos” de agricultores, “bandos” de caçadores e aldeias de pescadores (alto
rio Negro) hierarquizados entre si, mas com sistemas de vida muito diferentes, embora
interdependentes social e economicamente. No Alto Xingu, uma tribo faz os arcos para as
demais; outra, os colares de concha; uma terceira, a cerâmica; e uma quarta fabricava as
lâminas de pedra. Dessa forma, Aruaque, Carib e Tupi possuem os mesmos objetos, as
mulheres usam os mesmos uluri. Devemos negar complexidade a esses sistemas? Como
poderiam ser detectados pela arqueologia sem serem confundidos com uma impressão
enganosa de homogeneidade da cultura material, interpretada como uma marca de
simplicidade e unicidade étnica?
Aos poucos, a arqueologia se abre a essas questões, cujo debate permitiria escapar dos
modelos eurocêntricos.
De qualquer forma, não há dúvida de que a chegada dos europeus modiɹcou
profundamente as sociedades indígenas. Charrua, Minuano e Kadiweu domesticaram os
cavalos europeus criando, por alguns séculos, uma nova cultura baseada na razia e na
dominação dos povos vizinhos. Outros grupos – tais como os Tupinambá – desapareceram
em poucos decênios, varridos pelas doenças contagiosas contra as quais não tinham
anticorpos. Não há dúvida de que a calha do rio Amazonas era bem mais povoada no início
do século XVI que no ɹnal do XVII, embora ainda haja discussões sobre o tamanho das
populações desaparecidas. Terão os sobreviventes migrado para o interior das terras ɹrmes,
criando pequenas sociedades de um novo tipo, ou já existiam os sistemas tribais estudados
desde o século XIX pelos pesquisadores?
Com essas perguntas não respondidas deparamos com outra, fundamental: até que ponto
podemos usar os modelos propostos a partir da observação das populações indígenas atuais
para interpretar os vestígios arqueológicos?
A arqueologia brasileira hoje
A arqueologia brasileira demanda uma longa tarefa pela frente: juntar uma documentação
representativa em todas as partes do território nacional, que permita tratar problemas tais
como as modalidades do povoamento inicial, os processos de colonização sistemática dos
territórios, o desenvolvimento do manejo da natureza (e, eventualmente, de domesticação
ou importação de plantas cultivadas) e as diversas estratégias de sobrevivência que
coexistiram durante milênios. Sobretudo, falta avaliar as modalidades da longa coexistência
entre grupos social e economicamente díspares, cuja diversidade se esconde atrás da palavra
“tribo”, que aplicamos a todas elas. Talvez isso nos leve a descobrir fenômenos sociaisausentes dos modelos cientíɹcos tradicionais, as formas pelas quais grupos distintos parecem
ter-se articulado de maneira diversa do que ocorreu em outras partes do mundo, o modo
como essas mudanças se traduzem nos vestígios, as transformações das sociedades
indígenas decorrentes do contato e da colonização.
Para tanto trabalho a ser realizado, num país de dimensão continental, cuja maior parte é
ainda totalmente desconhecida do ponto de vista arqueológico, existem talvez duas
centenas de arqueólogos – a maioria, recém-formada e, mesmo assim, de maneira
assistemática. Com efeito, não há graduação de arqueologia no país, e o mestrado em dois
anos parece bem curto para preparar um proɹssional que lida com recursos patrimoniais não
renováveis a partir de uma abordagem pluridisciplinar, sobretudo quando esse mestrado
nem é exclusivamente dedicado à arqueologia, sendo um diploma em história ou
antropologia, apenas com uma “concentração” na disciplina.
Por outro lado, o campo de trabalho, de início puramente acadêmico, passou a ser quase
que totalmente ocupado pela iniciativa privada, por meio da arqueologia “de contrato”, cujo
objetivo é avaliar os impactos ambientais dos projetos empresariais (represas, estradas, linhas
de energia, gasodutos) e liberar – após rápida intervenção nos eventuais sítios arqueológicos
localizados em setores ameaçados – os terrenos para as obras. A arqueologia de contrato é
uma necessidade para evitar-se a perda de preciosas informações e poderia fornecer uma
excelente contribuição à ciência, em particular nas regiões ainda inexploradas. No entanto,
está insuɹcientemente disciplinada, e poucos projetos levam a um estudo adequado em
campo – muito menos em laboratório. Não há publicação científica, na maior parte dos casos,
nem controle de qualidade pelos peritos. Enɹm, os objetivos fundamentais das intervenções
de contrato, não sendo cientíɹcos, não visam, inicialmente, a abordar os problemas
arqueológicos estabelecidos a partir de preocupações acadêmicas. Depende, portanto, das
forças dos arqueólogos envolvidos, superar essas limitações.
Assim, a arqueologia “de salvamento”, de cunho mais técnico, deveria vir como
complemento para enriquecer as pesquisas cientíɹcas a serem realizadas por universitários.
Infelizmente não é o que acontece. A pesquisa acadêmica foi quase abandonada no Brasil,
mesmo pelos raros arqueólogos universitários, cuja maioria prefere aproveitar as facilidades
ɹnanceiras oferecidas pela iniciativa privada e raramente tenta compatibilizar os objetivos
cientíɹcos com os das empresas. Em consequência, corre-se hoje o risco de ver a pesquisa
realmente cientíɹca ser desenvolvida quase exclusivamente sob a liderança de grupos de
pesquisas estrangeiros. Perde-se assim a chance de se criar uma arqueologia regional
independente, que poderia enriquecer a ciência a partir de pontos de vista originais. Mesmo
sem se levar em conta as considerações nacionalistas, é uma pena isso acontecer, pois a
“ciência-diversidade” é tão importante quanto a biodiversidade. A sociedade moderna
ocidental, depois de ter promovido durante dois séculos a dominação e até a eliminação dos
grupos e pensamentos dos “outros”, começa a reconhecer e valorizar a riqueza da alteridade
e a sofrida experiência da América Latina, que poderia gerar uma abordagem diferenciada
das sociedades humanas.
Cabe agora aos órgãos patrimoniais e aos centros de pesquisa corrigir as distorções, criando
condições para estabelecer uma equilibrada e frutuosa colaboração entre as duas vertentes
da arqueologia. Caso contrário, nossa disciplina não sobreviverá, do mesmo modo que
nenhuma aldeia Kayapó poderia existir sem a interação dos integrantes de suas duas
metades.
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VOCÊ ESTÁ LENDO
A Pré-história do Brasil
Non-FictionLivro de André Prous (só tá aqui pq fica mais fácil pra eu ler, mas não é minha autoria)