As discussões sobre a entrada do homem na América

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Os primeiros
habitantes
As discussões sobre a entrada
do homem na América
É SABIDO QUE A HUMANIDADE não nasceu nas Américas, tendo penetrado neste
continente em algum momento do Pleistoceno final (o Pleistoceno é o período geológico que
se estende entre 2.000.000 e 10.000 anos AP*, ao qual sucede o período atual, o
Holoceno). Mas quando entrou, onde e como? O fenômeno de povoamento do Brasil deve
ser considerado no panorama geral da colonização das Américas.
No início do século XX, acreditava-se que antepassados diretos dos asiáticos atuais teriam
penetrado recentemente (há poucos milênios) na América do Norte, justiɹcando o aspecto
mongoloide da maioria dos indígenas americanos. O francês Paul Rivet tinha, no entanto,
obser vado que a conformação craniana dos homens de Lagoa Santa (mg), já considerados
possivelmente os mais antigos restos ósseos conhecidos no continente, se pareciam mais com
a dos australianos que com a dos asiáticos. Imaginou, portanto, que teria havido também
uma migração para a América do Sul a partir da Austrália, pelo Pacíɹco meridional. As
pesquisas posteriores mostraram que a presença do homem nas ilhas do Pacíɹco era muito
recente, e a ideia foi abandonada.
Em meados do século XX, veriɹcou-se a presença de populações humanas (as primeiras
observadas foram chamadas Clóvis, em referência ao nome do sítio onde foram
reconhecidas pela primeira vez, e as seguintes, Folsom) na América do Norte desde cerca de
11.500 anos atrás, durante um período mais frio que o de hoje (as temperaturas podiam ser
entre 6° e 10° abaixo das atuais). No início, somente se conheciam desses grupos alguns
sítios de matança de grandes animais, como mamutes e bisontes de uma espécie hoje
extinta. Com as ossadas desses animais apareciam alguns artefatos de pedra, tais como lascas
cortantes e pontas de dardo muito soɹsticadas. Apresentavam-se, portanto, esses povos
como grandes caçadores, especializados na matança de animais de grande porte em zonas
abertas – uma preɹguração dos índios históricos que, após terem aprendido a montar os
cavalos introduzidos pelos europeus, passaram a caçar os bisontes das grandes planícies.
Somente nos últimos anos foi possível veriɹcar que as populações Clóvis estavam
adaptadas a ambientes muito variados, inclusive às ɻorestas do sudeste americano, onde
viviam da coleta de vegetais, complementada pela caça a animais de médio e pequeno porte.
De fato, já havia grupos bastante diferenciados, que tinham em comum sobretudo técnicas
originais de lascamento da pedra para extrair dos blocos de sílex ou obsidiana longas lâminas
curvas e para fabricar pontas retocadas bifacialmente com uma delicada preparação para
facilitar o encabamento (a canelura, característica das pontas de Clóvis e de Folsom).
Enquanto os caçadores Clóvis parecem ter perseguido os animais maiores com lançasmanuais e varas que os obrigavam a chegar muito perto das presas, os Folsom dispunham de
um propulsor – vareta com gancho que permite lançar facilmente dardos com forte poder
de penetração a cerca de 30m. De qualquer forma, nenhum desses grupos conhecia o arco.
Os artesãos Clóvis escolhiam com cuidado as rochas de melhor qualidade para produzir seus
soɹsticados instrumentos, importando-as ou trazendo-as por vezes de centenas de
quilômetros de distância.
Até os anos 1990, a maioria dos arqueólogos – sobretudo os norte-americanos – achava
que esses chamados paleoíndios haviam sido os primeiros habitantes do continente e que
teriam penetrado na América pela Beríngia (uma faixa entre a Sibéria oriental e o Alasca
emersa durante boa parte do Pleistoceno). Com efeito, ao longo dos períodos glaciais, as
precipitações ɹcavam retidas, na forma de gelo, nas regiões polares, provocando um déɹcit
hídrico e um rebaixamento do nível do mar (cerca de 120m em relação ao atual, há cerca
de 18.000 anos!). Dessa forma, os locais por onde teria acontecido a passagem
intercontinental estariam hoje sob o mar, fora do alcance dos arqueólogos.
No entanto, as pesquisas realizadas nos últimos decênios revelaram uma presença
humana inquestionável entre 11.500 e 13.000 anos atrás na América do Sul –
particularmente no Chile meridional (em Monte Verde), no Brasil central (Lapa do Boquete,
em Minas Gerais, e Santa Elina, no Mato Grosso), no Nordeste e na Amazônia (Monte
Alegre). Como é consenso quase geral que os primeiros povoadores da América chegaram
pela Beríngia, isso signiɹca que estavam presentes na América do Norte já havia milênios,
portanto, anteriormente à Cultura Clóvis. Nos últimos anos, sítios como Cactus Hill (EUA),
com datações entre 12.000 e 25.000 anos, apresentam indícios bastante convincentes de
ocupação nesse período, e alguns outros ganham credibilidade também na América do Sul.
Alguns arqueólogos acreditam ter encontrado evidências ainda mais antigas da presença
humana, mas estas parecem duvidosas. No Brasil, o sítio mais discutido no ɹnal do século
XX foi o abrigo sob rocha de Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara (PI),
amplamente escavado ao longo dos anos 1970 e 1980. Até a base são encontrados carvões,
conjuntos de pedras por vezes queimadas, blocos de quartzito e de quartzo toscamente
lascados; plaquetas de quartzito com manchas vermelhas caídas da parede foram
interpretadas como vestígios de pintura.
No entanto, todos esses elementos estão sob discussão. Um estudo recente dos carvões de
“fogueiras”, entre os mais antigos, mostrou que eles estão rolados – podem ser oriundos de
fogos naturais, sendo depois trazidos pelas enxurradas. Os supostos instrumentos lascados
são todos feitos a partir de seixos que até hoje caem no abrigo quando há chuvas fortes, de
uma altura de 80m; alguns deles apresentam lascamentos espontâneos parecidos com os
que se encontram nos níveis pleistocênicos. Finalmente, as manchas pigmentadas não têm
composição diferente da dos escorrimentos naturalmente presentes no paredão, embora
uma estudiosa observe que apresentam granulometria mais constante.
Recentemente, datações de mais de 20.000 e 40.000 anos foram obtidas para uma
concreção que cobre uma pintura rupestre na mesma região, implicando antiguidade ainda
maior dessa ɹgura. Mas a datação direta do pigmento – por um método geralmente
considerado mais conɹável – indicou a idade de menos de 4.000 anos. Dessa forma, ɹca
difícil acreditar na origem antrópica dos indícios mais antigos do Parque da Serra da
Capivara. Em compensação, os vestígios humanos tornam-se evidentes e incontestáveis por
volta de 11.000 anos atrás. Nos estados do Mato Grosso e de Minas Gerais, os abrigos de
Santa Elina e da Lapa Vermelha foram também achados indícios datados entre 15.000 e30.000 anos, mas os arqueólogos que os encontraram se mostram prudentes em suas
interpretações.
Figura 2. Raspadeira de pedra, o mais antigo instrumento lascado de MinasGerais.

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