Capítulo 4

3 0 0
                                    

4
A pré-história do
Brasil central e do Nordeste
DEPOIS DO FIM da Tradição Itaparica, o Centro e o Nordeste do Brasil continuaram
povoados por grupos de caçadores, cujas características não são ainda claramente deɹnidas.
Esse período é marcado por uma intensa produção de graɹsmos pintados e gravados em
abrigos e lajedos. Nos dois últimos milênios antes da Era Cristã surgiram os primeiros indícios
de horticultura, tornando-se a seguir a cerâmica um elemento importante na identiɹcação
das culturas arqueológicas mais tardias.
Os caçadores-coletores
A partir de 9.000 ou 8.000 anos atrás, segundo as regiões, as características de ocupação
dos sítios modiɹcam-se em todo o Brasil central e nordestino. Nota-se uma diminuição
quantitativa dos vestígios de instrumentos e, muitas vezes, dos vestígios alimentares
encontrados nos abrigos, sugerin do que estes eram pouco frequentados na vida quotidiana.
No entanto, continuam utilizados, pelo menos para ɹnalidades rituais: decoração dos
paredões (“arte rupestre”), por exemplo, às vezes sepultamentos. Cada região, no entanto,
desenvolve algumas peculiaridades, seja no modo de sepultar os mortos, seja nos temas
pintados ou gravados nos suportes rochosos, seja, ainda, na forma de representá-los.
Os sítios de habitação e provavelmente a maioria dos cemitérios deviam ser instalados nos
terraços dos rios, tais como os de Buritizeiro (MG) ou Justino (SE) – ambos na margem do rio
São Francisco. No entanto, a raridade de sítios estudados de forma sistemática sobre os quais
há material publicado de maneira adequada e com sequências datadas com precisão tornam
qualquer síntese prematura. Dessa forma, nos limitaremos a apresentar algumas informações
muito gerais, estendendo-nos com maiores detalhes sobre a chamada arte rupestre,
bastante estudada nos últimos anos e que decora milhares de abrigos naturais.
Enquanto a Tradição Itaparica era bem-deɹnida pela produção de numerosos
instrumentos de pedra de forma característica, obtida por retoque de grandes lascas, os
vestígios das populações que a sucederam são bem menos típicos. Cada região apresenta
particularidades – em função, sobretudo, das matérias-primas utilizadas –, mas parece que
as populações costumavam extrair dos blocos de pedra lascas de tamanho mediano ou
pequeno, utilizadas imediatamente sem maior modiɹcação (ou seja, sem serem
conformadas com precisão por meio de retoques ɹnais). No máximo, acertavam uma parte
de um gume natural defeituoso, criando pequenos bicos ou serrilhados, sem se preocupar
em ter instrumentos de forma padronizada. Mesmo assim, ainda sabiam fabricar
ocasionalmente – ou obtinham por troca – artefatos plano-convexos retocados numa única
face para trabalhar a madeira e belas pontas de projétil retocadas bifacialmente. Esses
objetos, bem como os detritos provenientes de sua fabricação, aparecem discretamente nomeio dos milhares de lascas simples utilizadas como facas.
As robustas conchas dos grandes caramujos terrestres eram perfuradas por percussão. Isso
criava um gume particularmente adequado à retirada da casca dos galhos cortados para se
transformar em armas e instrumentos diversos. As representações rupestres mostram que,
nessa época, os dardos utilizados na caça ou em combates eram lançados não com um arco,
mas com um propulsor – bastão com gancho que proporciona longo alcance e forte
penetração. Com efeito, alguns indícios – feridas registradas em ossos, cenas rupestres –
mostram que havia confrontos entre as diversas populações nordestinas na época. As
diferenças entre os grupos deviam ser proclamadas por rituais, traços estilísticos na
fabricação dos artefatos, na decoração corporal e na arte rupestre. Os sítios decorados talvez
desempenhassem um papel especíɹco, ao marcar fronteiras ou pontos estratégicos dos
territórios.
Os rituais funerários são bastante variados. Em alguns abrigos observa-se a prática do
enterramento do corpo inteiro em covas – como na Lapa do Boquete (MG) e Buique (PE).
NoGentio (noroeste de Minas) e naGruta do Padre (BA), em compensação, os mortos eram
cremados, e os pacotes de ossos depositados nos abrigos. Entre 7.000 e 4.000 anos atrás, na
Pedra do Alexandre (PE), assim como na Lapa do Boquete, os sepultamentos de crianças
pequenas eram vivamente coloridos com pigmentos vermelhos e amarelos. Em vários
lugares, os arqueólogos encontraram os corpos acompanhados por colares de ossos, de
concha, embrulhados em ɹbras vegetais. No Justino (SE), os corpos jaziam estendidos num
terraço que domina o rio São Francisco. Em outras regiões, como em Lagoa Santa, não se
sabe o que se fazia com os mortos, cujos corpos desaparecem do registro arqueológico após
8.000 AP. Devem ter sido destruídos de alguma forma voluntária (exposição, cremação
completa) ou natural (enterrados a céu aberto em solo ácido).
Os primeiros agricultores e ceramistas
Há indícios de cultivo de plantas domésticas e da criação de reservas alimentares – ou de
sementes para plantio – no último milênio antes da nossa era, e talvez no ɹnal do milênio
anterior.Grãos de milho escavados em Santana do Riacho (MG) foram datados com certeza
de cerca de 2.800 anos atrás, enquanto outros, de origem estratigráɹca mais duvidosa,
teriam quase 4.000 anos. Pinturas rupestres atribuídas a uma fase tardia da Tradição São
Francisco representam raízes e tubérculos, provavelmente cultivados. Na Lapa do Malhador,
no vale do rio Peruaçu (MG), duas ɹguras da mesma Tradição parecem representar tipitis
(prensas para tirar o suco venenoso da mandioca amarga).
Mas é sobretudo a partir do período entre 2.500 e 1.200 anos atrás que as evidências se
multiplicam. Depósitos de espigas de milho, mandioca, caroços de algodão, cascas de
amendoim (os mais recentes contêm também grãos de feijão) e outros elementos perecíveis,
guardados em estruturas vegetais trançadas, ou mantidas por cordões, foram encontrados
em vários abrigos do norte de MinasGerais e do oeste da Bahia. Além de vegetais cultivados,
contêm coquinhos, restos de fruto de jatobá, urucum, sementes de maracujá e até penas
coloridas.
Na Lapa do Boquete, veriɹcou-se que essas estruturas de armazenamento eram
recobertas por cinzas para despistar os roedores e prevenir a infestação por insetos. Alguns
desses “silos” são muito bem-preservados e datados de até 1.200 anos atrás, mas é possívelreconhecer, na estratigraɹa, sinais de depósitos anteriores que foram retirados, perturbando
os sedimentos mais antigos – sem que seja possível saber em que época os abrigos começaram
a ser utilizados como celeiros.
Em várias partes do interior do Brasil central e nordestino, a cerâmica aparece também
perto do início da Era Cristã, embora datações bem mais antigas para a técnica sejam
conhecidas mais ao norte, em sítios de tipo “sambaqui” da Amazônia e do litoral do
Maranhão, e no cemitério do Justino (SE), perto da foz do rio São Francisco (entre 7.000 e
5.000 anos atrás).
Essas primeiras vasilhas em cerâmica não amazônica são em geral de tamanho reduzido,
apresentam formas globulares e não são decoradas. No Brasil central, geralmente se reúnem
sob a denominação de cerâmica de Tradição Una, e, no Nordeste, de “Tradição Pedra do
Caboclo”. As peças menores são fabricadas por modelagem, e as maiores formam pilhas de
roletes – cilindros de argila – posteriormente reunidos por pressão e alisamento. Essa técnica
se manteve até a chegada dos europeus, pois os ameríndios não utilizaram o torno. O uso de
moldes, comum nos Andes, não parece ter chegado ao Brasil.
Os agricultores do início da nossa era frequentavam, portanto, os abrigos, mas não
moravam neles. Utilizavam-nos para proteger seus depósitos vegetais e sepultar
eventualmente seus mortos. No norte de Minas Gerais e no oeste baiano cavavam fossas no
sedimento, por vezes no meio dos “silos”, onde deitavam ou sentavam os mortos, cujo corpo
era mantido flexionado com tiras de embira (entrecasca).
Em Minas Gerais, onde houve processos de mumiɹcação natural (lapas da Babilônia, do
Gentio, do Boquete, de Carangola), veriɹcou-se que os corpos dos adultos podiam ser
revestidos com uma capa de folhas de palmeira amarrada com um cordão. Cestas ou sacolas
continham instrumentos para a sobrevivência no além. Recipientes vegetais (cabaças) ou de
cerâmica, um arco quebrado com uma seteira farpada acompanhavam ainda alguns mortos.
Um estojo de sobrevivência em cabaça continha espátulas feitas em osso de veado, buris de
dentes de roedor e de porco-do-mato, novelos de cordas, lâminas de machado enroladas em
tiras de embira, cera de abelha (para fabricar o grude necessário ao encabamento) e uma
faca de concha. Crianças muito pequenas eram sepultadas em pequenas urnas de cerâmica,
com a cabeça coberta por penugem branca e colares de osso. Na Furna do Estrago (PE),
flautas de osso com vários furos acompanhavam um dos adultos.
Figura 13. Ponta de flecha lascada em sílex, Andrelândia, MinasGerais.
Figura 14. Ponta de flecha lascada em cristal de quartzo, descartada após quebra acidental
durante a fabricação, aproximadamente há 9.000 anos, Diamantina, MinasGerais.
Figuras 15 e 16. Instrumento lascado plano-convexo (“lesma”), Diamantina,
Figura 17: Concha de gastrópode terrestre, perfurada para servir de plaina, Lapa do
Boquete, MinasGerais.
Figura 18: Duas lascas cortantes de quartzito, utilizadas sem retoque, Buritizeiro, Minas
Gerais, c. 6.000 anos.
Figura 19: Contas de colar feitas de semente. Sepultamento datado de c. 8.500 anos,
Santana do Riacho, MinasGerais.
Figura 20: Espátula de osso de pata de veado, recortado e polido, Lapa do Boquete, vale do
rio Peruaçu, MinasGerais.
Figura 21 e 22: À esq.: lasca com retoque limitado, criando um bico utilizado para raspar
pigmentos minerais; à dir.: bloco de hematite (pigmento vermelho) mostrando estrias de
raspagem realizada para obtenção de pó colorido, Lapa Pequena, Montes Claros, Minas
Gerais; datados em c. 7.500 anos.
Figura 23. Cesto trançado encontrado em local de sepultamento, Lapa do Boquete.
Na região de Arcos e de Pains, no oeste de Minas Gerais, os mortos eram deixados dentro
das grutas, em salões completamente escuros, com vasilhas de cerâmica. Na Lapa do Caboclo
(Diamantina – MG), os corpos eram depositados em tubos feitos de casca de árvore,
fechados lateralmente por um couro animal.
Conhecemos poucos sítios a céu aberto, destacando-se os cemitérios sergipanos do Justino
e de São José, instalados nos terraços periodicamente inundáveis do rio São Francisco. Neles,
os corpos estavam enterrados estendidos ou ɻetidos, muitas vezes acompanhados por uma
vasilha de cerâmica repousando na barriga ou até substituindo a cabeça. Colares de osso,
dente, concha e pedras verdes e até uma flauta foram ainda deixados com os mortos.
Infelizmente não se identiɹcaram os sítios de moradia desses primeiros agricultores,
alguns dos quais ainda utilizavam os abrigos entre 1.000 anos antes e 1.000 anos depois de
Cristo. Os últimos dentre eles lascavam a pedra e fabricavam instrumentos às vezes bastante
elaborados, cujo conceito lembra algumas das características da antiga Tradição Itaparica –
particularmente na elaboração de pesados e espessos instrumentos lascados de um só lado.
Mas também nos locais onde não se encontravam facilmente rochas apropriadas para
fabricação de lâminas polidas (como anɹbolitos ou diabásio), lascavam bifacialmente o sílex,
dispensando o trabalho de polimento (excessivamente demorado para tratar essa rocha)
para obter lâminas de machado, cujo gume lascado tinha menor durabilidade. Nessa época,
as pontas de osso ou madeira substituem completamente as armações de pedra.
A arte rupestre
Embora certas pinturas rupestres talvez tenham sido realizadas já no período anterior, a
maioria dos graɹsmos encontrados nos abrigos data provavelmente dos últimos seis milênios
antes da Era Cristã. Com certeza não eram obras de “arte” no sentido que damos hoje à
palavra. É claro que, durante todos esses milênios e em tantos lugares, algumas pessoas
podem ter deixado simples graffiti, e outros desenhos talvez fossem feitos para ɹns
decorativos. No entanto, o mais provável é que a maioria dos grafismos tenha sido feita como
aɹrmação de etnicidade, expressão de uma crença, ato mágico, proclamação política de
status, trato ou posse. O reconhecimento da existência de complexos temáticos estáveis ao
longo de séculos e milênios levou os arqueólogos a deɹnirem as “tradições” rupestres, nas
quais variações menores de uma região para outra permitem reconhecer fácies, ou
subtradições, enquanto modiɹcações ocorridas ao longo do tempo permitem distinguir
sucessivos estilos.
Não se encontram graɹsmos pré-históricos em todo o Brasil central ou nordestino. Em
algumas regiões, faltavam suportes rochosos abrigados, e talvez as populações deixassem suas
marcas em árvores, retirando as cascas para criar ɹguras em negativo – como faziam os
índios Bakairi no século XIX. Mas mesmo em locais onde existem paredes naturais
protegidas, há regiões nas quais a “arte rupestre” é inexistente ou raríssima – como as de
Arcos e de Pains, em MinasGerais –, enquanto no vale do rio Peruaçu e na serra da Capivara
é difícil andar ao longo dos paredões além de poucas centenas de metros sem encontrar um
painel pintado.
Apresentaremos aqui como exemplo três sequências regionais cujas unidades estilísticas
muitas vezes se propagaram para longe do seu centro inicial, influenciando-se mutuamente.
Os sítios da região de São Raimundo Nonato (PI) serviram de referência para estabelecer a
sequência de base do Nordeste brasileiro.
O conjunto de pinturas mais antigo é formado por representações humanas agrupadas em
cenas, eventualmente acompanhadas por animais. Esses graɹsmos deɹnem a Tradição
Nordeste, que, segundo as pesquisadoras locais, se teria desenvolvido entre 12.000 e 6.000
anos atrás, no Piauí meridional. Nesse estado, o estilo mais antigo, denominado Serra da
Capivara, apresenta ɹguras monocrômicas cuja cor contrasta com a do suporte natural. As
representações humanas mostram cabeças por vezes ornadas com cocar, isoladas, e as
ɹguras parecem assexuadas. Quando estão em grupo, o sexo é indicado de maneira
convencional (um traço para o pênis, sempre erguido, e um círculo para a vulva). As
personagens são geralmente muito dinâmicas. Formam cenas familiares (dois adultos e uma
criança), relações sexuais (casais em várias posições, ou vários homens segurando a mulher,
homens segurando um pênis enorme); caça ao tatu (o animal é segurado pelo rabo) ou ao
veado (com uma rede). Uma cena muito característica é conhecida como a “da árvore”:
várias pessoas, de braços erguidos, rodeiam uma árvore, ou uma delas segura um galho.
Figuras antropomorfas também formam correntes, evocando acrobatas. As figuras zoomorfas
são sobretudo de cervídeos e emas.
Figura 24. Tradição Nordeste, Toca da Extrema II, Parque Nacional da Serra da Capivara,
Piauí.
Por volta de 9.000 anos atrás, as cenas de violência se multiplicam: estupros, combates,
execução de pessoas amarradas a um poste (complexo Serra Talhada). Finalmente, com o
estilo Serra Branca, o movimento desaparece e as ɹguras tornam-se angulosas, com um
grande corpo retangular preenchido por desenhos geométricos eventualmente bicrômicos
dos quais se destacam pequenos membros filiformes.
Figura 25. Tradição Nordeste, Toca do Baixão das Europas I, Piauí.
Os dois primeiros estilos da Tradição Nordeste se propagaram fora do Piauí, para os estados
do Nordeste, o norte de MinasGerais, o sul de Goiás e até o MatoGrosso. No RioGrande do
Norte desenvolveu-se uma versão original – chamada “Subtradição Seridó”, onde os animais
são muito raros (somente tucanos e emas), e as ɹguras humanas apresentam um bico
parecido com o de pássaros. Sua inɻuência alcançou as terras baixas da Bolívia e da
Colômbia orientais.
A Tradição Agreste substitui aos poucos a Tradição Nordeste e seria a única representada
na arte rupestre do sul do Piauí entre 6.000 e 2.000 anos atrás. Trata-se de grandes ɹgurasmonocromas, toscamente executadas, representando seres humanos isolados (“bonecões”)
ou animais pouco naturalistas, por vezes acompanhadas por impressões de mãos. Essa
Tradição é considerada intrusiva no sul do Piauí, e seria originária de Pernambuco, onde
essas figuras são muito mais numerosas.
No Brasil central, as sequências foram estabelecidas sobretudo a partir das pesquisas
realizadas em MinasGerais. No centro desse estado, os painéis mais antigos ostentam figuras
da Tradição Planalto, caracterizada pela dominância visual de ɹguras animais pintadas em
monocromia (vermelho, amarelo, branco ou preto), entre as quais os cervídeos são a grande
maioria. Os quadrúpedes, bastante naturalistas, costumam agrupar-se em famílias (com o
macho, uma fêmea e uma ou duas crias), e os peixes, aos pares ou em cardume. Quando
isolados, os quadrúpedes são por vezes cercados por minúsculas ɹguras humanas ɹliformes
hiperesquematizadas; às vezes uma delas ɹnca um dardo nas costas do animal. Outros
animais estão associados a um desenho em forma de grade que poderia representar uma
armadilha. Em Santana do Riacho, peixes estão presos numa rede. Algumas personagens
muito simples situam-se na proximidade de ɹguras circulares das quais parecem sair nuvens
de pontos, que interpretamos como colmeias.
Em sítios como Cocais, as representações de animais foram posteriormente cobertas por
uma nuvem de pontos ou alinhamentos de bastonetes. Mais tarde ainda foram pintadas
novas ɹguras zoomorfas, em estilo distinto. Alguns sítios, como Sucupira ou Santana do
Riacho, apresentam até mais de 2.000 pinturas pertencentes à Tradição Planalto que se
sobrepõem de maneira aparentemente anárquica, mas outros sítios não receberam mais que
algumas figuras. Havia com certeza uma hierarquia entre sítios principais e satélites. Existem
diversas fácies regionais: na serra do Cabral, onde as representações são bem mais
naturalistas que em Lagoa Santa; na serra do Cipó, onde as ɹguras mais antigas têm seu
corpo apenas contornado. No Alto Jequitinhonha, pelo menos quatro estilos se sucederam
nos abrigos. Essa Tradição se estendeu até o Paraná, a oeste, alcançando o Tocantins, ao
norte, e talvez até a Bahia, a leste.
Figura 26. Representação de cervídeos e peixes, grande abrigo de Santana do Riacho, Minas
Gerais.
Figura 27. Quadrúpedes, sítio da Pedra Pintada dos Cocais, MinasGerais.
Quando a Tradição Planalto se extinguiu (talvez entre 3.000 e 2.000 anos atrás),
apareceram em certas regiões ɹguras humanas vermelhas, pouco numerosas, bem mais
detalhadas e maiores, embora de feitura bastante tosca. Ostentam às vezes cocares, e suas
articulações podem ser reforçadas por bolas pintadas. Trata-se de uma manifestação da
Tradição Agreste, chegada do Nordeste, onde alguns pesquisadores acreditam que se teria
desenvolvido desde 7.000 anos atrás.
Figura 28. Tradição Nordeste, personagens antropomorfos, Lapa do Ballet, Matozinhos,
MinasGerais.
Posteriormente chegam em Lagoa Santa inɻuências da Tradição Nordeste, com a fácie
Ballet, que representa ɹguras humanas ɹliformes com um bico de ave, órgãos sexuais bem
marcados e que formam procissões ou cenas aparentemente ligadas a rituais de
fecundidade. Por vezes, os pintores rasparam as pinturas Planalto anteriores para pintar
numa superfície “limpa”. Finalmente aparecem representações de tubérculos, talvez cultivados, que se sobrepõem aos grafismos das tradições anteriores.
Ao longo dos rios semipermanentes de Pernambuco, da Paraíba e na beirada dos afluentes
do Araguaia, em Goiás, matacões e lajedos são cobertos por gravuras. Apesar da sua grande
diversidade temática e estilística, seus graɹsmos costumam ser atribuídos a uma unidade,
chamada Tradição Itacoatiara. No Nordeste dominam conjuntos de pequenas depressões
que podem ser interpretadas como constelações ou como gotas de água. As gravuras do sítio
do Boi Branco evocam para nós uma representação da chuva caindo perto de um rio, mas é
preciso desconɹar das interpretações que fazemos a partir de nossos próprios modos de
representação. Em Goiás, destacam-se círculos às vezes interligados por longas linhas
sinuosas.
Figura 29. Tradição São Francisco no sudoeste da Bahia.
No norte de Minas Gerais, em Caiapônia (GO) e a noroeste do estado da Bahia, a
sequência é bastante diferente tanto daquela do Piauí quanto da do centro mineiro.
No vale do rio Peruaçu, os graɹsmos mais antigos e já bem-datados – entre 9.000 e 7.000
anos atrás – são gravuras não ɹgurativas encontradas enterradas na Lapa do Boquete. A
seguir multiplicam-se, nos paredões, pinturas geométricas lineares atribuídas à Tradição São
Francisco, entre as quais se reconhecem representações de objetos – em particular armas
(dardos e propulsores) e talvez maracás. As pinturas geométricas tornam-se aos poucos mais
complexas, com alta frequência de ɹguras lembrando redes, e recentemente veriɹcou-seque se tratavam de estilizações de ɹguras humanas. Num momento intermediário
encontramos, em geral em sítios modestos, algumas pinturas intrusivas do Complexo
Montalvânia (que será descrito mais adiante). Mas a Tradição São Francisco volta a se impor.
Pouco a pouco, seus pintores passam a usar cada vez mais a bicromia ou a tricromia para
realçar as pinturas, que sobem o mais alto possível nos paredões mais vistosos. Para tanto,
lançavam mão de andaimes, ou subiam em árvores e colunas estalagmíticas.
Finalmente se desenvolvem estilos tardios que privilegiam não mais as ɹguras lineares,
mas superfícies monocromáticas e contornadas por um traço contrastante. Muitas delas
(estilo Caboclo) se parecem um pouco com tapetes ou esteiras, embora algumas pinturas às
vezes representem instrumentos e até vegetais (cactos, mandiocas).
Uma ruptura se marca com o aparecimento das pinturas naturalistas da unidade
estilística Piolho do Urubu, representando vegetais (coqueiros, pés de milho) e sobretudo
animais, quadrúpedes, pernaltas, tamanduás, peixes e aranhas (?) que ocupam a base dos
paredões, superpondo-se às mais baixas dentre as ɹguras São Francisco. Numa fase posterior,
os mesmos temas passam a ser gravados por picoteamento na rocha, em blocos tombados ou
em paredes ainda livres ou rejuvenescidas por uma demão de tinta que recobre as pinturas
anteriores; trata-se da tradição estilística que chamamos Desenhos.
A última Tradição, a Nordeste, aparece em paredes pouco atrativas, até então desprezadas
pelos pintores. Nesta derradeira tradição pré-histórica de pintura aparecem minúsculas
ɹguras pretas: ɹleiras de quadrúpedes ou de emas, ou pequenos grupos de ɹguras humanas
em cenas de sexo ou formando grupos familiares, acompanhados por umas poucas ɹguras
lineares. Por vezes há representações bem naturalistas de coqueiros, e uma cena mostra
uma pessoa trepando por uma corda no tronco de uma palmeira.
Uma mesma sequência geral, com ɹguras Nordeste sucedendo graɹsmos São Francisco,
pode ser observada em outros estados do Brasil central – particularmente em Palestina,
Goiás.
Um pouco mais a nordeste do Peruaçu, a região de Montalvânia, a Tradição São Francisco
não conseguiu se impor. Ela aparece intrusiva, no interior de manifestações atribuídas ao
Complexo Montalvânia. Este é caracterizado por sítios que combinam pinturas
monocrômicas nos tetos dos abrigos com gravuras picoteadas no chão rochoso. A temática
parece fazer uma síntese original de elementos Nordeste (a ɹgura humana “dinâmica”) e
São Francisco, com um grande número de representações de dardos e propulsores. Os raros
animais figurados são exclusivamente répteis. Representações de pés, aos pares ou alinhados,
são também típicas dos grandes painéis gravados, onde as ɹguras, mais ou menos
equidistantes, ocupam todo o espaço de maneira organizada. Longas linhas curvas ou traços
retos curtos – os “elementos de ligação” – associam certas ɹguras privilegiadas, técnica
também encontrada nos lajedos do Araguaia, provavelmente bem mais tardios. O principal
sítio de gravuras (a Lapa de Posseidon) apresenta mais de 5.000 grafismos.
Figura 30. Lapa do Dragão, painel pintado IV, Montalvânia, MinasGerais.
Os tetos de alguns abrigos dessa região, em geral situados no topo das maiores elevações,
apresentam ɹguras coloridas cuja elaboração lembra a Tradição São Francisco, mas que
representam essencialmente ɹguras parecidas com sóis e estrelas, no meio dos quais voam
aves pintadas e se inserem algumas ɹguras de lagarto. Tais conjuntos são particularmente
típicos do oeste baiano, onde foram atribuídos à Tradição Astronômica, a Cosmológica.

A Pré-história do BrasilOnde histórias criam vida. Descubra agora