Passar bem, Miya

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Quando aconteceu pela primeira vez, Atsumo estava debruçado na grama. Ele lia uma revista sobre plantas que poderiam ser extremamente tóxicas. Nada de especial, só algo que ele tinha achado na caixa de coisas velhas da mãe. Era difícil passar o tempo durante o verão, ainda mais quando não dava pra visitar os amigos com piscina.

Mas até que gostava, e nos fones ele ouvia sua melhor playlist. O verão não era nada mal, pelo menos ele não tinha que se preocupar com a escola. Era super a praia dele não ter obrigações e fazer as coisas por vontade própria. Ele jamais iria tirar um tempo para ler se o assunto fosse estudar. Ele nunca tirava.

Miya repousava na sombra perto da cerca, que era a única coisa que o dividia da casa dos Sakusa. Costumava passar as tardes no quarto, mas o ventilador havia pifado. E ficar no mesmo cômodo que Osamu num calor de quase quarenta e sete graus era suicídio.

Estava tranquilo, no parágrafo sobre Dieffenbachias, ou como era conhecida popularmente: a "comigo ninguém pode". Quando sentiu gotas de água caindo, na pele e no papel, ele travou lendo aquele nome científico por umas sete vezes até entender que não se tratava de chuva.

Olhou para o céu e sentiu os olhos lacrimejarem, o Sol estava mais forte. Que tipo de idiota ele era há segundos atrás, cogitando a chuva naquele calor infernal? Se fosse, era só ali em cima do loiro. E o mais confuso, vindo da casa do vizinho.

Uma lâmpada acendeu na mente de Atsumo, antes de sair reclamando ele observou pelas fendas da cerca. Poderia ser a senhora Sakusa, já que eles tinham uma roseira bem ali. O marido dela era muito esquisito, com certeza não era do tipo que curtia jardinagem. Aqueles pés no par de chinelos roxo só poderiam ser dele...

- Kyoomi? - Miya se levantou, se deparando com o próprio.

Ele não tinha a melhor das expressões, mas Atsumo reparou que era uma das poucas vezes que ele vestia uma regata amarela. Ou só era uma das poucas vezes que via ele usando algo que não fosse preto. De qualquer forma, combinava com as luvas de jardinagem.

- Ah, foi mal. - Ele se desculpou, mas ainda expressava indiferença no olhar.

Só para entender melhor: Atsumo e Kyoomi se conheciam e eram vizinhos desde o fundamental, mas eles nunca foram amigos de fato. Viviam de picuinha, ambos se difamando para os amigos, mas eles até que se entendiam bem.

Digo, dizer que eles se respeitavam era algo bem contraditório, mas Miya gostava de provocá-lo. E para todos que não o conhecessem o tanto que ele o conhecia, diriam que era difícil constranger Sakusa. Miya sabia que aquilo era mentira, ele disfarçava tudo com aquela carranca séria, sempre julgando quem quer que fosse.

Mas todo esse conhecimento que ele tinha sobre Kyoomi era bem raso. Porque eles nunca tiveram uma conversa de verdade, e com isso eu quero dizer que eles não conseguiram trocar palavras sem ofensas ou sem parecerem dois primatas.

O loiro até tentava ser amigável, e Sakusa reconhecia isso. No fim ele acabava dando risada sozinho quando lembrava das babaquices de Atsumo. Eles só tinham que se aturar na escola, e quando seus pais se reuniam no fundo do quintal. Também quando Miya batia em sua porta tarde da noite para devolver o gato que insistia em fazer da sua casa a casa dele.

Agora que estavam de férias, era muito raro ver aqueles cachinhos por aí. Colocando o lixo pra fora, varrendo a calçada, cuidando do jardim...

- Não sabia que cê curtia esse lance de jardinagem. - Miya se escorou na cerca, com os cotovelos apoiados.

- Eu não curto. - Mentiu. - E você? Tá tentando envenenar alguém?

Atsumo jogou a revista que segurava para qualquer canto do quintal, encarando o maior com o cenho franzido. Aquela expressão logo foi substituída por um sorriso de canto.

- Na verdade, eu tava pensando em te convidar pra fazer umas caipirinhas. - Uma grande mentira, só havia sido a primeira coisa que ele conseguiu pensar.

Mas ele não se lamentava por isso, até porque era uma ótima idéia.

- Dispenso. - Respondeu simplista, sem tirar os olhos da roseira.

- Ah, vai. - O loiro revirou os olhos. - Não tá achando que eu vou envenenar você, né?

- Escuta só. - Kyoomi desligou a mangueira, deixando em qualquer canto do seu lado do gramado. - Se eu, Sakusa Kyoomi, te chamasse pra beber, você viria sem pensar duas vezes? É claro, tudo isso hipotéticamente falando porqu-

- Eu vou. - O interrompeu. - Por que não iria?

- Você é burro ou o quê?

- Sendo sincero, não é como se você fosse esse monstro que você mesmo impõe. Não seria capaz, e mesmo que me envenenasse... vamos concordar que já tá meio fora de moda viver com um governo desses no poder.

Kyoomi não conseguia distinguir se o oxigenado estava mesmo falando sério ou apenas sendo sarcástico. Sua expressão de "nojo" estava estampada por causa da lorota que ele tinha acabado de ouvir.

- Não vai dar piti se um dia você acordar amarrado em cativeiro. Espero do fundo do coração que toda essa burrice seja superficial.

- Você anda assistindo muitos casos criminais, o mundo não é assim. - Atsumo dedilhou a cerca. - Mas é muito fofo da sua parte.

- Primeiro que, na verdade, o mundo é bem pior do que nos programas de investigação. E segundo que isso não é nada fofo, seria uma merda eu perder parte do meu dia porque minha família me obrigou a ir no seu funeral.

- Não tô falando disso, Omi. - Ele tinha um sorriso provocativo nos lábios. - Me sinto tão bem em saber que você se preocupa comigo.

O Sakusa franziu o cenho, encarando o loiro de forma desgostosa. Ele não estava mentindo, claro, Atsumo poderia ser o idiota mais burro do mundo até quando ele não queria, alguém tinha que se preocupar com ele.

Quer dizer, alguém além do irmão gêmeo e da mãe desnaturada.

- Por mim, você pode atravessar uma rodovia de olhos fechados que eu não vou dar a mínima. - Mentiu. - Passar bem, Miya.

- Me avisa quando pensar nas caipirinhas. - Gritou para o garoto, que já caminhava para dentro de casa. - Tem muito limão maduro no pé aqui de casa.

Ele deu de ombros, fingindo não ouvir até sumir na porta de vidro escura. Imagina só, Sakusa Kyoomi bebendo todas com o loiro de farmácia? Ele teria que admitir, talvez não fosse a pior coisa do mundo. Estava calor, e há quem não goste de beber umas pra refrescar?

Mas o fato de estar na companhia de Atsumo lhe perturbava um pouco, não tinham intimidade alguma para sentar e conversar como dois amigos. Quem sabe na próxima, e se tivesse "próxima".

Atsumo se sentou na grama assim que o outro entrou para dentro. Seus cabelos não estavam encharcados, mas era molhado o suficiente para estarem úmidos. Bufou, pronto para entrar também. Afinal, não era dia de lavar o cabelo, e agora não tinha escolha.

Bem-me-quer ou Mal-me-quer?Onde histórias criam vida. Descubra agora