Baile

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Naquela noite, toda dor, toda culpa e todo o trauma que eu carregava foram atenuados. Naquela noite, enquanto girava aquela garota pelo salão e a trazia de volta para perto de mim, era como se o tempo tivesse parado. Eu podia ouvir seus batimentos tão descompassados quanto os meus. Mas eu não era burro. Claro que não! Eu sabia que ela não tinha esquecido. Como poderia? Era eu o responsável por uma de suas maiores dores. Isso me deixou bem confuso pelo simples fato de que foi ela quem me chamou pra dançar.

Eu não fazia ideia de que tocá-la iria me causar esse efeito. Sim, eu já havia tocado nela antes. Já fui seu captor e também salvei sua vida. Mas o que estava diferente era o fato de que dessa vez, ela que veio a mim. Mas o que isso significa pra ela? Mais importante ainda, o que significa para mim?

Ela estava ali comigo, me olhava intensamente mas não falava nada e isso estava me angustiando. Tamanha angústia que me fez querer fugir dali. Eu não merecia aquilo. Não merecia o olhar bondoso dela. Não merecia a admiração do Mateus. Não merecia sequer meu cargo novamente.

- Lance... você parece estar incomodado com essa dança. Fiz mal em te convidar? -Erika quebrou o silêncio me arrancando dos meus pensamentos.

- Não, não fez. Só estou... confuso. Pensei que você me odiasse. – minha angústia falou mais alto, fazendo me falar a última coisa que deveria naquele momento.

- Bem... – começou ela enquanto abaixava a cabeça visivelmente envergonhada – confesso que te odiei sim. Odiei todos aqueles que me falaram que eu deveria te entender e que você mudou. Odiei com todas as minhas forças. – Meu coração congelou ao ouvi-la dizendo isso, por mais que eu já soubesse. – mas... não posso ignorar o fato de que você me salvou. Além disso, quero honrar o último pedido do Valkyon.

Olhei para ela espantado. Falar sobre meu irmão ainda era doído e mesmo depois de sete anos, ouvir seu nome me trazia uma onda de arrependimento capaz de me afogar.

Percebendo isso, Erika tocou meu rosto com ternura e disse:

- Desculpa. Era pra ser só uma dança. Sabe, eu sei que você o amava. E eu o amava também. Com cada batida do meu coração... Mas ele escolheu se sacrificar para que você alcançasse sua redenção, assim como eu me sacrifiquei para salvar este mundo.

Ela sorriu levemente e eu tirei sua mão do meu rosto, levando até meu peito.

- Obrigado, Erika. Eu realmente o amava muito... apesar do rumo dos acontecimentos.

- Lance, não vamos falar disso agora. Apenas dance.

Acordei com o romper da aurora e me direcionei ao banheiro do Q.G. Precisava organizar o treino dos guardiões e, com esse baile que a Koori organizou, tínhamos a oportunidade perfeita para ver suas habilidades em meio a exaustão. Um combate com os humanos ou com os kitsunes era iminente e não havia muito o que fazer a não ser nos prepararmos. Estava fora de questão iniciarmos a guerra.

O vapor se espalhou pelo banheiro enquanto a água quente escorria pelo meu corpo. Meu pensamento se voltou para o baile... Para ela. "Ele escolheu se sacrificar para que você alcançasse redenção." Olhei meu reflexo no vidro embaçado pelo vapor e limpei a parte que correspondia ao meu rosto para vê-lo melhor. Meus próprios olhos me condenavam. Não sei se foi pelo cansaço ou pela culpa que eu carregava mas, pareceu que a pessoa refletida no vidro falou comigo.

- Redenção? Segunda chance? Você realmente acredita nisso?

Em um sobressalto, dei um passo atrás e me bati na parede do banheiro. Não pude evitar as lágrimas. As mesmas lágrimas que sempre vinham todas as noites antes de dormir depois de ter matado meu irmão. Dessa vez foi mais forte. Por causa dela. Ela me fazia lembrar do Valkyon o tempo todo. Eu os via juntos quando me infiltrava no Q.G. Eu via como ela o fazia sorrir. Mas é claro que, naquela época, eu era tolo o bastante para desprezá-los. Eu não tinha motivo para sorrir. Estava movido pelo ódio e queria que meu irmão se juntasse a mim a qualquer custo. Mas ele não sabia que eu estava vivo. Ninguém sabia além do Leiftan, meu antigo sócio que, por amor a essa mesma garota, se rendeu ao bem.

Chorei até que comecei a sentir a água esfriando, o que me trouxe a realidade novamente. Me recompus e acabei meu banho. Me vesti e fui direto ao salão principal para o café da manhã que pra variar, tinha um ingrediente que estava pesando muito naquela sopa: o sal.

Terminei meu café sem reclamar. Não me sentia no direito. Poderia ser pior. Segui para a planície.

O sol começava a ganhar força e então preparei o ambiente para o treino tentando não me distrair com as lembranças que me assombravam. Tive que me esforçar muito pois no fim das contas, tinha um nome que permanecia piscando em minha mente. Erika. Eu precisava dar um jeito nisso.

O treinamento havia começado e, antes dos primeiros 5 minutos, as pessoas já estavam evidentemente cansadas. Nós, Chefes das guardas, dávamos voltas fazendo o monitoramento mas, naquela manhã, o desempenho da maioria ia de mal a pior. Procurei a Erika em meio a multidão. Pelo menos eu tinha uma desculpa pra me aproximar sem muito alarde pois era eu o líder da guarda Obsidiana, a qual ela fazia parte. Mesmo depois daquela dança e daquela conversa, eu não tinha certeza se ela estaria tão à vontade comigo hoje. Acertei na mosca. Foi só me aproximar que sua face ficou rubra e ela desviou o olhar. A Karenn e a Koori estavam treinando com ela. Pigarreei e falei:

- Meninas, tudo bem por aqui?

- Ahh que bom que perguntou! – A Karenn falou irritada. – Essas duas parecem estar no mundo da lua. Está difícil levar esse treino a sério.

 - Karenn, pega leve. Você é uma vampira e tem um vigor quase tão implacável quanto o do dragão que habita dentro do Lance – Koori retrucou enquanto Erika permanecia calada.

- As habilidades de vocês são diferentes de um modo geral. Talvez devessem trabalhar no que vocês têm mais dificuldade. Nada garante que sempre terão um punhal, uma espada ou um bastão o tempo todo em mãos.

- Ah, então a Erika ou pessoas como você sempre terão vantagem né? Vocês têm poderes que não dependem de armas. – A Koori protestou. Aproveitei para olhar para a aengel em questão. As meninas fizeram o mesmo.

- Não me olhem assim. Nem tenho controle dos meus poderes. – ela falou enquanto dava um passo para trás na defensiva. Seu desconforto era tangível. Será que está com vergonha de ter dançado comigo e teme que as pessoas falem sobre ela? Tentei olhar em seus olhos, mas ela desviou.

- Você está certa, Koori. Por outro lado, não adianta ter poder e não ter habilidade ou controle como Erika mencionou. Este treinamento foi escolhido neste dia justamente por estarem cansados após a noite do baile. Os inimigos não permitirão que tiremos uma soneca para nos recuperarmos. Dito isso, espero que reflitam, meninas. Temos o dever de proteger a guarda e os civis de Eel.

Ao terminar minha fala, elas realmente ficaram pensativas e isso me deixou aliviado. Realmente temos que nos preparar e toda ajuda é válida.

- Desculpe-nos, Lance. Iremos levar a sério. – disse Erika. Me limitei a um breve aceno com a cabeça e me retirei. Estava bem claro que minha presença a incomodou. Tentaria falar com ela a sós em outro momento.

A Redenção do Dragão de GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora