I 1.5 Filho de Babakur

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- Estou agindo como um maldito cão treinado – resmungou Luc para si mesmo antes de adentrar a parte mais densa da mata.

Seus pés quebravam galhos e folhas com estardalhaço, enquanto andava. Não se importava com o barulho. Que soubessem que estava chegando. Ninguém o desafiaria.

Por enquanto.

Tentou afastar o ressentimento e a raiva, mas, a cada passo, seus pés pisavam com mais força contra o chão da mata.

Mais uma vez ferida. Mais uma vez inconsciente. Mais uma marca em seu corpo. E ainda vão dizer que é minha culpa.

Apurou os ouvidos, notando que, além dos piados das corujas, um murmúrio contínuo vinha ao longe. Concentrando-se, projetou sua energia para além daqueles próximos metros, encobrindo em poucos segundos a distância entre ele e a tribo. Uma grande fogueira ardia e pessoas dançavam vestidas de preto. Joias de prata tintilavam, copos se erguiam em brides e beijos eram roubados. Um homem virava uma dose após a outra, fazendo uma careta a cada gole. O murmúrio constante vinha de uma mulher de longos cabelos negros que cantava. Alguns a seguiam, mas a maioria apenas mexia os corpos, no ritmo lento da toada.

- De volta tão cedo – ecoou uma voz rouca na sua mente.

- Saia da minha cabeça, velho imundo – respondeu Luc, com raiva.

Uma gargalhada se seguiu, embaralhando seus sentidos, até que ele se viu de volta ao silêncio da mata. Continuou andando na direção da festa.

Depois de uma curta caminhada, ele percebeu as barracas espalhadas ao redor de uma clareira. Algumas barracas estavam vazias, enquanto outras abrigavam seus moradores mais introspectivos. Um velho com uma longa barba branca e cintilantes olhos violetas fumava seu cachimbo em cima de uma pedra. Uma mulher mirava a noite estrelada, deitada na grama. No seu colo, a cabeça de uma menina repousava enquanto ela dormia. Quando suas botas encontraram mais um galho, a cabeça da mulher girou na sua direção e ela o encarou com seus olhos ametistas. Os lábios sensuais estavam pintados de vermelho e ela abriu um sorriso convidativo.

- Venha me ver depois, Luc – sussurrou ela, antes de voltar o olhar para o céu.

Ele não respondeu e seguiu até a fogueira.

- Luc, veio beber o Décimo entre os seus? – questionou um jovem de cabelos escuros e corpo esguio. – Quem deseja rever? Bateu saudade dos irmãos?

- Não vim tomar o Décimo – resmungou. – Vim ver o velho.

- Ah. Não está muito festivo, hein? O velho está em sua barraca – apontou o homem, perdendo o interesse e voltando para a dança.

Atravessando a clareira, Luc encontrou o que parecia ser a maior das barracas, ampla e esfarrapada, a tenda se estendendo sobre as estacas precárias de madeira. Como a maioria dos filhos de Babakur, a sua tribo era nômade e Luc sempre precisava de um dia ou dois para rastreá-los.

Atualmente, viviam perto de um rio na parte norte da mata de Palacianos. Nos últimos meses, suas visitas ficaram cada vez mais frequentes, graças à sua busca por um modo de curar Hannah. Ao contrário dos hayas da Ilha, os filhos de Babakur não seguiam qualquer regra sobre seus poderes. Um filho de Babakur poderia ser um haya, ou um ghaya, ou um curandeiro. Ou até mesmo os três. Porém, eram poucos aqueles com poder suficiente para ser pelo menos um desses.

Entre aquelas pessoas que dançavam, bebiam e se reuniam em volta da lareira, Luc contava poucos cujo sangue de Babakur fazia jus ao pai e nenhum era como ele. Porém, ele via suas marcas. Uma mulher que dançava exibia uma feia cicatriz no peito, grande e escura. Ao seu lado, um jovem ostentava uma marca assustadora perto da têmpora. E até mesmo a criança que pulava perto do fogo trazia uma mordida feroz no ombro direito. Eram cicatrizes impossíveis e letais, provas incontestáveis do poder do velho curandeiro.

O Portal III | Livro 3 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora