I 1.6 Baile dos Mortos

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- Está com a cara mais fechada que o normal, Meu Kaal... Até mesmo para o senhor – comentou Joshua.

Noa suspirou, passando os dedos pela testa franzida.

- Essa noite... Me incomoda, Blake... Devo hospedar um baile tão poucos dias após aquele ataque e com Hannah agonizando em uma cama... Tentei cancelar, mas os sacerdotes insistiram.

- Não quer levantar a ira de Vashï Amadum, não é mesmo? O Baile dos Mortos é uma homenagem à deusa... E acho de bom tom agradecermos que ninguém morreu.

Noa lhe lançou um olhar de esguelha enquanto fechava o colete na frente do espelho.

- O quê? – perguntou Joshua. – Ora, Rariff, estou grato que ele não morreu.

Noa levantou uma sobrancelha: - Nada que disser vai sair desse quarto, Blake.

- Ora, está bem. Não consigo evitar, eu o detesto. Sei que é um homem de valor, mas detesto vê-lo por aí, com seus cabelos ridículos e sua bengala de senhoras. Odeio como sempre tem ótimas ideias, odeio como conhece muito mais do que nós sobre... Sobre tudo! Sobre as verdades que esconderam de nós! Odeio como se ofereceu para treiná-lo e está fazendo um ótimo trabalho nisso... E odeio ainda mais como poderá compreendê-la muito melhor do que eu um dia o faria! Pronto, está aí! Estou cheio de ódio!

Joshua se levantou em um rompante e se postou diante das janelas compridas do quarto do Kaal. Noa não se aproximou, levando bem mais tempo que o necessário para fechar o colete.

- Blake, é como Serena disse. Eles se conhecem há anos, essa disputa já estava vencida quando vocês se conheceram...

- O que só me deixa mais revoltado! Posso ser um homem iludido, mas eu senti, em diversos momentos, o quanto eu a divertia, o quanto ela me dava atenção... Sou um tolo, Rariff. Mas obrigado. Talvez, xingar aqui dentro seja melhor do que sair para o baile com esses pensamentos...

Noa assentiu, concordando, sentando-se na cama para calçar os sapatos.

- Talvez o senhor devesse xingar um pouco também, Rariff. Vá em frente. Diga que odeia o Qayid, e se ressente de Enzo Yezekael e ainda está com raiva de Damien por ter escondido que a criada era a sua rani. Talvez isso faça bem ao senhor também.

- Bom, de fato, odeio o Qayid... – ele riu. – Mas o ódio não é nada para mim agora... Só quero que essa agonia termine. Só quero que ela acorde... Sei que está com dor e isso... Isso me apavora... – Noa passou as mãos pelos cabelos, pousando os cotovelos nos joelhos. - Me irrita ter que deixar esse quarto e alimentar a corte com essas fofocas ridículas. Me enoja ter que fingir que ela não passa de um instrumento de guerra, de um ardil que posso usar... Devo tirar o chapéu para Hannah, Blake. É horrível descobrir que ouvi mentiras por tantos anos... Estou revoltado com isso. Mas mentir... Fingir... É exaustivo. Ela nem acordou e já estou me perguntando como isso vai funcionar. Como posso estar no mesmo ambiente que ela e convencer qualquer pessoa de que ela não é nada para mim?

- Coloque a sua máscara do mau humor, Meu Kaal. O senhor tem o dom de parecer perpetuamente entediado.

- Isso deveria ser um elogio, Blake? – perguntou Noa, indignado.

- Estou apenas apontando uma habilidade que o senhor cultivou... Vamos?

Noa suspirou pesadamente antes de se levantar. Como era costume antes de um baile, assim que saiu do seu quarto, foi rodeado por inúmeras damas que aguardavam um convite para acompanhá-lo. O Baile dos Mortos não era uma ocasião muito festiva, porém todos usavam seus melhores trajes negros para homenagear Vashï Amadum, aquela que viajou nas costas de Bhaskar para levar a vida dos primeiros filhos de Laranjeira. Durante toda a noite, as taças seriam erguidas em memória daqueles que já alçaram voo com Amadum, deixando apenas saudade e solidão.

O Portal III | Livro 3 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora