II 2.2 Cobaia

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Era cedo demais para estar jogado no chão com sangue escorrendo pelo nariz.

Maldição.

- Precisa ser melhor do que isso, Luc – a voz do velho soava distante, mas mesmo confuso ele conseguia ouvir a pitada de ironia. Sentiu o chão áspero contra a palma da sua mão, enquanto tentava se levantar. Percebeu que tinha desmaiado devido ao esforço que fizera.

- Estou fazendo o meu melhor... - a sua cabeça latejava e os seus olhos se recusavam a se abrir.

- O prisioneiro está com uma aparência melhor que sua...

- Me dê um minuto, velho – resmungou Luc, erguendo a cabeça. Os cabelos negros grudaram no seu rosto suado, e ele os afastou com a mão, limpando o fino rastro de sangue que corria até a sua boca.

- Ora, vai pedir um minuto a Vashï Amadum quando ela vier buscar a pequena rani? "Um minutinho, Vashï, já já vou curá-la, estou apenas me recuperando..."

- Cale a boca, velho! – berrou Luc, a raiva fornecendo a energia para levantar-se. O movimento brusco fez com que ficasse tonto e ele precisou se apoiar em uma lateral da caverna escura.

- Assim está melhor. Veja o seu progresso, meu jovem – o ancião apontou para o homem jogado à sua frente. Era um homem um pouco mais velho que Luc. Os cabelos longos e embaraçados denunciavam que era um prisioneiro há muitos anos. Seu rosto estava tão sujo que quase não se via as suas feições. As pupilas pálidas e nevoentas se mexiam de um lado para o outro, sem propósito. Perdera a visão, um castigo comum para quem cometera o crime do qual era culpado. – Conseguiu fechar as feridas nos braços e nas pernas. No entanto, essas cicatrizes devem ficar...

- Nem o senhor é capaz de remover todas as cicatrizes. Vi muitas em nosso povo aí fora.

- "Nosso povo?" Andou pensando sobre a minha proposta? – o velho bateu o cajado no chão com energia.

- Não, foi um modo de dizer...

- Pois deveria... Junte-se a nós, Luc. É mais poderoso que qualquer um dos filhos de Babakur da tribo dos guerreiros.

- E o que eu ganharia com isso?

- Que tal a sua família de volta?

- Meu pai está morto, assim como minha mãe.

- É verdade, mas somos todos filhos do mesmo pai. Aqui, será aceito. Aqui, será amado e idolatrado. Chega de desconfiança, chega de ordens. Poderá dar suas próprias ordens.

- Não vou trair a confiança de Hannah. Ela precisa de mim, não posso abandoná-la.

- Bem... Essas feridas na pele do nosso prisioneiro... – O velho espetou o corpo do homem jogado no chão, quase inconsciente, com o seu cajado. – Você poderia removê-las se estivesse mais forte. As cicatrizes nas pessoas aí fora são de ferimentos fatais... Alguns até com venenos... Sabe que esses são os ferimentos mais complexos. Algo assim – o cajado de madeira cutucou uma cicatriz recém-formada que permeava todo o antebraço do homem torturado – é superficial. Chegará lá, estou certo. Que tal agora um ferimento mais difícil? – a ponta afiada do cajado deslizou pelo peito do homem até parar no seu coração. O prisioneiro estremeceu, sua face contorcida em uma máscara de pavor.

- Por favor... Piedade – pediu o moribundo, choramingando.

- Mantenha a sua decência, homem. Por acaso, as jovens que estuprou não pediram piedade?

- Eu... Por favor...

- Pediram? Responda – mandou o velho, espetando o cajado com mais força contra o peito do homem.

- Sim...

- E suas súplicas não foram atendidas, não é mesmo? Não podemos clamar aos deuses por algo que nunca oferecemos.

- Deixe o homem respirar ao menos, velho – pediu Luc, sentindo-se igualmente exausto.

- Ora, acha que Yan deixará a sua rani descansar? Acha que pensará: "pobrezinha, está muito ferida, vou deixar que respire um pouquinho?". Não seja tolo, Luc. Vamos. Espalhe seu veneno até o coração deste homem.

- Velho, não sei se terei forças para puxar o veneno de volta... Preciso de um tempo...

- Não precisa – determinou o ancião. – O que precisamos é conhecimento. Agora, precisamos conhecer seus limites.

- Mas e se eu terminar por matá-lo?

- Precisaremos, então, de uma nova cobaia.

***

Mais uma vez, Noa percorreu o bosque naquela manhã, acompanhado de seus mais fiéis guardas e Joshua Blake.

- Foram vistos aqui pela última vez – anunciou Ker Elijah. – A espada foi encontrada a alguma distância.

Cinco homens de sua guarda estavam desaparecidos há dias. Saíram para fazer uma patrulha nos arredores do vilarejo e nunca mais foram encontrados. Porém, uma espada manchada de sangue havia sido achada por crianças que corriam no bosque e levada pelo pai dos meninos até a fortaleza.

Os guardas identificaram a arma como a de um dos desaparecidos.

Aquela busca o angustiava. Não saber o que se passara em suas próprias terras, não ter uma resposta para dar para a família e mais... Descobrir que seu povo estava sendo atacado tão próximo a sua fortaleza... Esses pensamentos estavam entre aqueles que o mantinham acordado durante as noites.

Como seria durante a guerra? Seria capaz de dormir sabendo que enviara homens para os braços de Amadum nos campos de batalha? Seria capaz de fechar os olhos e se esquecer de todas as vidas pelas quais era responsável?

Entre os desaparecidos, apenas um mantinha família em Adij Rariff. Toda vez que a esposa dele passava pelos corredores, Noa não conseguia evitar a culpa e a preocupação que o assolavam. Ele já tinha dispensado a faxineira, insistido para que tirasse esses dias de buscas de folga, mas ela se recusava, garantindo que trabalhar a mantinha ocupada.

Ele entendia esse sentimento. Apesar de passar as noites ao lado de Hannah, esperando qualquer sinal de melhora, ter um trabalho para ocupar sua cabeça fizera os dias passarem mais rápido. Já as noites... Eram longas e assombradas por várias possibilidades e cenários aterrorizantes.

E se não despertasse?

E se ele jamais visse novamente o brilho daqueles olhos cor de fogo?

Naquela manhã, quando a deixara, poderia jurar que assim que sua mão se desprendeu da dela, ela a apertara levemente, como se quisesse impedi-lo, como se pedisse que aguardasse...

Desejou tão ardentemente que fosse verdade que esperou mais meia hora, mirando insistentemente a sua mão, até ser surpreendido por Christine, que chegara para ficar com Hannah.

- Sequestros são comuns em época de conflitos – comentou Blake, montado no seu imenso corcel negro.

- Esses guardas não têm qualquer informação sobre os nossos planos – argumentou Noa, irritado.

- Não, mas eles podem falar sobre a proteção da fortaleza, sobre a quantidade de homens destacados para a segurança e até os rumores sobre Hannah Maël...

Como sempre, Blake estava certo. Qualquer informação era preciosa em época de guerra. Sequestrar nortenhos parecia um golpe baixo para aquele que fora o Kral de Adij Rariff por dez anos, mas Noa conhecia o tio o bastante para saber que não teria escrúpulos para vencer.

- Façam mais uma busca por qualquer sinal, a partir de onde a espada foi encontrada. Ker Elijah, o senhor pode liderar um grupo, enquanto Blake lidera o outro. Vou voltar para o Conselho. Se não encontrarmos nada, retomaremos as buscas amanhã – determinou Noa, antes de começar a cavalgada de volta para a fortaleza.

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