II 2.4 Bilhete

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Uma batida à porta e Hannah mancou desastrosamente até a entrada do quarto. Antes de abrir, respirou fundo, passando os dedos pelo vestido. Pelos deuses, pareço uma boba, se recriminou.

É Rariff. E nunca conversamos sinceramente. E ele nunca me viu realmente... Sem um disfarce que ocultasse as minhas feições... Ou um vestido de criada que escondesse quem eu sou... E deve estar furioso comigo. Por causa de todos os segredos, todas as mentiras, tudo. E agora... Agora, para piorar tudo, ainda invadi o Conselho e deixei bem claro que não queria que ele treinasse.

Pelos deuses.

Fechou os olhos por alguns instantes, então baixou a maçaneta apenas para dar de cara com Ker Elijah, os olhos bondosos encarando-a.

- Srta. Maël, um bilhete do Kaal – ele anunciou.

- Ah... Ker Elijah. Pode me chamar de Mani – murmurou, pegando o bilhete fechado com o selo de Noa.

Então, é isso. Me odeia tanto que não faz questão de me ver. Me odeia tanto que não quer descer aqui e conversar comigo. Nunca vai me perdoar.

Nunca...

- Estou feliz que a senhorita está se sentindo melhor – disse Ker Elijah, interrompendo seus pensamentos. – Elisa já vai atendê-la, ela deve chegar em alguns minutos...

- Elisa? O quê? Não, não preciso...

- Não está com fome, Srta. Mani? – perguntou Ker Elijah, com um sorriso. – Pelo que sei, gosta de um bom café, tâmaras, figos e está há dez dias sem comer.

- É verdade, Ker Elijah. Obrigada – agradeceu Hannah. A sua energia era o bastante para mantê-la viva por meses, mas não se comparava a uma boa refeição.

Assim que o guarda saiu, fechou a porta e se deitou na cama, passando o bilhete entre os dedos. Pensou em abrir o envelope, mas suas mãos tremiam, suadas.

Quero abrir e não quero.

Pensou no olhar de Noa sobre ela no Conselho, tão insistente, tão duro. Sua expressão não revelava nada, nenhum sentimento.

Coragem, Hannah. Desde quando você é essa covarde ridícula? É apenas um bilhete. Você está em sua fortaleza, está vestindo as roupas que ele deixou para você. Vai encontrá-lo mais cedo ou mais tarde, é bom que saiba logo como se sente.

Com um impulso, abriu o envelope, desdobrou o bilhete e leu a única frase na letra rebuscada de Rariff.

Vou vê-la assim que puder.

"Vou vê-la assim que puder"... Apenas isso? Quando der, ele vem me ver. Sou isso, um nada. Algo com o qual ele lidará quando tiver um tempo. Quando puder...

Com raiva, amassou o bilhete e o abandonou em cima da cama. Encarou as janelas compridas com determinação, ficando de pé até sua perna machucada doer. Sentiu as lágrimas espreitando em seus olhos, sua cabeça doendo, enquanto permitia que a enxurrada de sentimentos a inundassem.

O que esperava, sua tola? Quantas vezes Serena avisou? "Ele vai odiá-la, Mani". "Ele vai dizer com todas as letras 'Eu te odeio'". "Eu vi, Mani". "Sinto muito, Mani". "Sim, eu continuo vendo. Sinto muito, mas ele vai dizer as palavras 'eu te odeio'".

Ele me odeia.

Eu menti. Dissimulei. Enganei. Eu o seduzi de propósito, apenas para confundi-lo. Eu neguei seu pedido de casamento. Não apenas uma vez, eu neguei mais de uma vez, eu o levei à loucura.

E agora ele sabe. Sabe a fera que habita em mim. Sabe o perigo que eu sou e a maldição que eu carrego. E sabe que não posso ser sua krali, nunca, jamais, porque não deixarei um herdeiro nessa terra. E sabe a desgraça que sou para quem me ama, para quem decide lutar ao meu lado. Veja só Damien! Damien, que fielmente está ao meu lado e quase morreu por causa disso. E agora, quando eu morrer, vou levá-lo comigo.

O Portal III | Livro 3 - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora