I 1.3 Frio

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Fogo, cinzas, pó. Fogo nas cortinas, fogo em Shailaja, fogo ao redor do seu corpo. Me leve, pediu ela. Preciso acordar, me leve. Dor. Ela ouviu o próprio gemido de dor, sabia que estava chorando, mesmo enquanto dormia. Preciso acordar. Tudo doía: seu peito, sua perna, seus músculos.

Por favor, por favor, por favor.

- Gaetana, acho que ela está acordando... – ela ouviu uma mulher sussurrar.

Leila. A esperança surgiu em seu peito em meio ao tormento. Leila, por favor, quis gritar. Leila, qualquer coisa para aplacar essa dor. Qualquer coisa.

- Não, meu amor, ela ainda está muito fraca – a voz de Gaetana veio de tão distante, tão tão distante...

- Não consigo que ela beba nada se não acordar – respondeu Leila, com uma voz fraquinha. – Deve estar com sede e fome, já se passaram muitos dias...

- Está vivendo apenas da energia... Venha, vou chamar Rael para tentarmos um banho gelado – decidiu Gaetana.

Eu consigo ouvir. Estou ouvindo, por favor. Por favor, não me deixe.

Mas ela não conseguia abrir os olhos, seu corpo não obedecia, nada se mexia.

Ela foi deixada no silêncio absoluto. Não conseguia ouvir nada, não conseguia abrir os olhos. Entre os rompantes de dor que rasgavam a sua pele, ela se lembrou de fragmentos, imagens desconexas que surgiam e evaporavam na sua mente. A dor deu lugar à raiva e ela queimou.

Queimou, queimou e queimou, a raiva espumando em seu estômago, consumindo a dor, como óleo que alimenta uma labareda, ela sentiu que a raiva aumentava sua energia, a deixava mais forte.

Pela primeira vez, um pensamento lúcido irrompeu a barreira de memórias confusas: Eu tinha conseguido. Eu convenci Ariel. Ele estava indo embora.

Luc, seu teimoso miserável, você vai pagar por isso. Como ousa me contestar?

Mãos fortes pegaram seu corpo com carinho e ela se debateu, a dor rasgando sua perna.

Você me paga, você me paga, você me paga.

- Pelos deuses, estou com medo – disse o homem que a carregava. – Fico feliz que esteja melhor, minha rani.

Vou matá-lo, você vai se arrepender.

Não conseguia abrir os olhos, mas tudo estava vermelho, a ira e a decepção, a angústia e a dor se confundiam na sua mente, no seu estômago, nas suas feridas, então, de repente, frio. Gelo queimou sua pele, tomou seu ar, ela não conseguia respirar, não conseguia pensar. O gelo era tudo que existia e ela nunca conseguiria sair, ela precisava nadar, nadar, sentia a água escorregadia na sua pele, entrando nas suas feridas, tomando tudo. Se sentiu paralisada, a raiva não existia mais, ela não queria mais nada, não queria se vingar, não queria matar, nem fazer Luc pagar, queria apenas sair daquele gelo. Minutos se passaram. Horas se passaram. Uma eternidade no frio. Sozinha, no gelo. Mais uma vez, sozinha, abandonada.

Eles me abandonaram aqui. Estou sozinha. Por favor, alguém. Por favor, me tire daqui. Por favor...

- Por favor – ela se ouviu pela primeira vez.

- Gaetana! Ela falou! Mani, estamos aqui, Leila, Gaetana e Rael – ela ouviu a voz de Leila.

- Rael... – ela tentou falar e, com alívio, ouviu sua voz mais uma vez. – Me tire daqui...

- Não, Mani, você precisa, é bom para você, por favor – implorou Leila.

- Rael, é uma ordem – mandou ela.

- Minha rani, por favor, mais um pouco – pediu Rael. – Está muito ferida. Se conseguir abrir os olhos, eu tiro você.

Ela se esforçou, mas suas pálpebras estavam tão, tão pesadas. Tentou mexer as mãos, encontrar qualquer coisa em que se agarrar. Mas o frio era tudo que existia. Balançou os braços, procurando qualquer coisa, mas só havia a água tão gelada que sua pele estava dormente, ela não sentia nada. Mexeu os braços mais e mais, e um dedo roçou... em algo. Uma pedra, a lateral de uma banheira. Ela se esgueirou até a lateral, os joelhos batendo contra lajotas duras, sentindo a pedra sob os dedos, então, encostou a cabeça ali, exausta. Não conseguiria abrir os olhos, ela sabia. Não tinha forças, não havia mais nada, não sentia nada. Nem dor. O frio havia levado a dor. Só existia o frio agora, então ela repousou. Deixou que o frio a tomasse. Nenhum fogo poderia alcançá-la ali. Nada, nem ninguém. Seus pensamentos ficaram vazios, sua mente estava oca. Na banheira cheia de gelo, ela dormiu.

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