Capítulo III

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Agosto, 2024

Carol acordou lentamente. Aos poucos seus sentidos recobraram a consciência e ela ouviu vozes e risadas que vinham do cômodo de baixo. Da janela do quarto entravam alguns raios de luz alaranjados. O Sol já estava se pondo e Carol percebeu que seu cochilo de 15 minutos tinha se tornado algumas horas. Com o corpo ainda mole, ela se espreguiçou e correu a mão pelo colchão. Estava vazio. Ela tinha sido deixada dormindo sozinha, como uma criança que dorme no meio da festa e acorda num quarto desconhecido. A diferença é que aquele quarto não era nada desconhecido. Muito pelo contrário.

A decoração com cores claras, as fotografias na parede, a guitarra encostada entre a mesa, o guarda-roupa e claro, as inúmeras medalhas e troféus nas prateleiras perto da cama. Algumas tão antigas que uma fina camada de poeira podia ser vista se observadas de perto. Carol se lembrava da primeira vez que tinha entrado ali, quando Anne a trouxe para conhecer seus pais. Lembrava do frio na barriga, das palavras ensaiadas que não conseguiam ser pronunciadas e do receio de não ser aceita pela família. Mas todo aquele drama durou poucos segundos até uma senhora simpática a receber de braços abertos e sorriso no rosto. Naquele momento ela teve a certeza que tudo que encontraria ali era apoio e muito amor.

Após se levantar e jogar água no rosto para melhorar o semblante sonolento, a jogadora seguiu o cheiro delicioso escadaria abaixo, até encontrar seu cômodo favorito da casa: a cozinha. Reconheceu a voz de sua mãe antes de encontrá-la encostada na bancada, cortando alguns legumes. Ao seu lado, explicando alguma coisa numa mistura de inglês, holandês e português, estava sua sogra, Dona Irene. Era sempre um evento à parte quando suas duas famílias estavam reunidas, ela ainda se surpreendia com o quanto tinha dado certo aquela mistura.

No cômodo ao lado, sentados no sofá e assistindo a algum jogo que passava na TV, estavam seu pai, sogro, cunhado e sobrinho. Pelo jeito que eles estavam olhando a tela, parecia que o entretenimento estava muito bom. Carol tentou desviar da cozinha sem ser notada, mas a percepção de dona Irene foi mais rápida.

— Boa noite, querida! Dormiu bem?

A cara amassada da jogadora não negava que o "cochilo" havia sido muito bom.

Boa noite, Dona Irene... não era para eu ter dormido tanto, queria ajudar com as coisas — Carol respondeu se lamentando.

— Não se desculpe, querida... nós já organizamos praticamente tudo. Você estava cansada, mereceu esse descanso. — a senhora simpática respondeu com um sorriso no rosto.

— Minha linda, está melhor da dor de cabeça? — sua mãe apareceu ao lado de Dona Irene, segurando seu rosto e lhe dando um beijo na bochecha.

— Tô sim, mãe. Era só cansaço e sono mesmo.

Carol havia chegado da longa viagem do Brasil até a Holanda no início da tarde daquele dia. Ela foi a última a comparecer nas tão desejadas e planejadas férias em família. Isso porque tinha entrevistas e compromissos inadiáveis com a TV, jornais locais e mídia em geral. Ainda não estava acostumada com a rotina de campeã olímpica, mas tinha certeza que todo aquele assédio da mídia iria valer a pena pela sua conquista. Tinha lembrança apenas de tomar banho e logo em seguida apagar na cama confortável e com cheiro de amaciante.

— Eu tô ajudando Irene com essa sopa, fica pronta daqui a pouco. Mas você pode comer alguma fruta antes, tá com muita fome? — sua mãe perguntou.

— Só um pouco, mas esse cheiro tá ajudando a aumentar. — Carol respondeu, risonha.

Sua mãe começou a se afastar, tagarelando sozinha sobre as opções que ela tinha, mas a atenção da atleta foi totalmente atraída por outro cheiro familiar. Ela se virou para ver Anne entrando na cozinha carregando algumas compras, que foram deixadas na bancada. Carol deduziu que a esposa estava voltando do mercado, e logo a hipótese foi confirmada ao ver a marca conhecida nas sacolas.

— Oi... dormiu bem? — Anne se aproximou enquanto retirava da sacola algumas das compras e guardava nos armários próximos.

— Mais ou menos. — Carol respondeu, observando os movimentos da sua companheira.

— Ah é? E faltou o que pra ser melhor? — Anne perguntou num tom mais baixo, com um leve sorriso no canto da boca.

Carol conseguia pensar em algumas respostas para aquela pergunta, mas nenhuma delas era possível de ser dita em voz alta ali no meio da cozinha com, literalmente, toda a sua família por perto. Ela apenas teve certeza de que seu olhar cerrado foi suficiente para sua esposa entender o recado.

— Você me deixou dormir demais. Acordei sozinha. — fez um bico com os lábios.

— Não viu a notícia que saiu? Campeãs Olímpicas precisam dormir três vezes mais para se recuperar. — Anne falou em tom sério.

— Engraçadinha — Carol cruzou os braços, mas não conseguiu manter a pose séria por muito tempo.

Anne então a puxou para um abraço apertado, que ajudou a relaxar todo seu corpo imediatamente. Era incrível o poder que a holandesa tinha sobre os seus sentidos, apenas alguns segundos dentro daquele abraço e Carol se sentia segura e amada, como se nada de ruim pudesse atingi-la.

— Eu comprei umas coisas que você gosta — Anne falou enquanto alisava suas costas e fazia um leve cafuné nos fios soltos na base de seu pescoço.

— Foi por isso que eu me casei com você — Carol respondeu, aproveitando o carinho.

— Tem certeza? Achei que você tivesse se apaixonado pelo meu passe A — Anne falou, com um sorriso nos lábios.

— Esse foi o segundo motivo — Carol sorriu e deixou um beijo em seu pescoço — Você não viu o que eu disse na entrevista?

Logo após o resultado das olimpíadas de Paris, Carol retornou ao Brasil e foi recebida com muita festa da torcida e atenção da mídia nacional e internacional. Porém, uma das últimas entrevistas que concedeu era mais pessoal e mencionava não somente a sua carreira e conquista recente, mas também seu relacionamento com Anne e a representatividade que ambas traziam ao mundo do esporte. "Amour d'or et du bronze" era o título da matéria de um dos tablóides mais importantes do esporte, acompanhado daquela que viria a ser umas das fotos favoritas de Carol: suas mãos segurando o rosto de Anne e a olhando como se ela fosse a pessoa mais importante do mundo. A sensibilidade do fotógrafo tinha conseguido captar toda a essência do momento, e Carol não poderia ser mais grata por isso.

— Eu vi a matéria. Parece que foram gentis com as perguntas e não te deixaram desconfortável. Foi tudo bem?

— Sim, foi tudo tranquilo. Mas uma das jornalistas disse que queria fazer uma segunda parte entrevistando você também.... Eu disse que ia ver a possibilidade.

Anne suspirou. Ela não tinha nada contra entrevistas, muito menos sobre um assunto que não havia problema algum em falar sobre. O que lhe incomodava sempre era a exposição e como isso poderia afetar a sua carreira e da sua esposa. As pessoas eram maldosas, o que a fazia ter cuidado com esse tipo de conteúdo, mesmo que tenha começado a se expor mais nos últimos anos, principalmente após o início do seu relacionamento público com Carol. E com as medalhas Olímpicas, ela sabia que era inevitável a crescente onda de popularidade das duas.

Anne, me ajude a arrumar a mesa! Vamos jantar — a voz de Dona Irene se fez presente, rompendo a bolha que as duas se encontravam.

— Eu vou pensar sobre e falo mais tarde, tá? — respondeu, selando seus lábios brevemente.

— Tá bem — Carol respondeu, relaxando.

Ela sabia que a esposa estar considerando a ideia já era um ótimo começo. Observou enquanto Anne se juntava lentamente à paisagem da cozinha, com os demais familiares que haviam chegado sem que ela tivesse percebido. Sua expressão tão à vontade e relaxada próxima da família contrastava com seu jeito determinado e focado dentro das quadras. Carol se lembrou da primeira vez que a viu dessa forma e a notou como algo além de uma simples companheira de time. Desde aquele dia, seu subconsciente tentou avisar do que estava acontecendo, apesar das inúmeras tentativas de negar os sentimentos confusos.

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Amour d'or et du bronzeOnde histórias criam vida. Descubra agora