1 - Sonho

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Frio. Uma sensação cujo prazer em senti-la está relacionado à circunstancia em que se sente. Sentir frio após um intenso calor não é nada mais do que um alívio, enquanto sentir frio numa tempestade de neve é algo aterrador.

 Albo pensou que era incomum senti-la logo pela manhã, num súbito pensamento que seu grogue corpo tivera, como primeira ação do dia. É curioso, pois em toda a sua vida ele demorava vários minutos para adquirir consciência do seu corpo e vontade, relaxando em sua cama até que a luz do sol em seu rosto se tornasse insuportável, o obrigando a levantar e seguir sua vida. Não dessa vez. Não havia sol, nem sono, nem luz: Apenas o frio. 

Ele se perguntava se havia morrido, se tinha deixado o mundo para trás e agora estava condenado a algum tipo de limbo. Seu coração pulsava acelerando, e percebeu que o silêncio no ambiente era suficiente para que escutasse seu próprio coração, seu pulmão inspirando e expirando o ar frio. Não havia tentado se mover, nem pretendia. Tinha medo. A cada sensação nova ele descartava cada vez mais a possibilidade de ser um sonho e acreditava na de estar morto.

Finalmente tentou se mover, levando seu braço até o rosto, para acorda-lo, mas foi em vão, o seu corpo não obedecia.

— Olá. — uma voz não conhecida lhe disse, trazendo arrepios na espinha. Real demais para um pesadelo. Surreal demais para ser verdade. — Você.. Eu o conheço...

Ele se sentiu cair em um abismo, sem poder ver um palmo a sua frente.
"Interessante o poder de discernimento entre subir e descer, que o nosso corpo tem", pensaria ele em outrora. Agora ele estava muito assustado para tal. Não havia dúvidas em sua cabeça de que aquele era seu fim.

Acordou em um pulo, levando seu braço ao seu rosto, como queria fazer em alguns momentos atrás, acertando-o com força nos ossos no punho, desajeitado, e deitou-se novamente, se colocando a chorar.

Ele havia abraçado o desespero do condenado, e agora sentia como se tivesse uma segunda chance na existência, se colocando a repensar todas as suas atitudes até então, e percebendo que em suma, um vendedor de nozes achocolatadas era um legado medíocre, para se dizer o mínimo. Estava a sentir uma dor de profundo arrependimento, numa crise descontrolada, na qual fazia a dor do auto golpe em seu rosto ser mínima, quando comparada com o seu sofrer.

Albo tinha 19 anos, era esguio e alto para a sua região, tendo 1,70 metros de altura. Seu rosto era magro, a fome poderia ser implacável no visual de quem a possui. Não tem amigos e morava sozinho há quatro anos. Depois que sua mãe faleceu ele teve de continuar o negócio da família.

Vender nozes achocolatadas não é uma tarefa difícil quando o cliente se trata de viajantes, já que é uma especiaria única da região de Bornacte. As nozes nascem de brotos plantados na areia, e dentro delas uma pasta com pequenas sementes lembra muito o gosto de chocolate, embora um tanto mais frutado.

Como uma espécime acostumada ao clima árido, prolifera-se como mato, caso regada diariamente. Estas nogueiras rasas, rentes ao chão, rendem cerca de vinte nozes por metro quadrado, renovando-se semanalmente. Era uma fonte de renda viável, com a oportunidade de criação de vários pratos que utilizam o ingrediente como o foco, mas não era o suficiente.

Os locais não compravam regularmente as nozes, nem pagavam o preço absurdo que ele era obrigado a impor, sabendo que o cultivo era fácil e as nozes vinham em montes. E logo agora, após a taberna local ter sido destruída em uma batalha, havia pouco motivo para viajantes permanecerem nem maneiras de fornecer seus produtos ao dono da taberna para que fossem revendidos. Além do mais, não podia nem vende-las como ração de alto valor calórico pois não eram viáveis: fora do calor escaldante e clima seco, apodreceriam rapidamente, tornando-se tóxicas, com a pasta marrom do interior azulando e se tornando um azul ciano escuro.

Sua situação estava triste e suas economias mais ainda. Ele sabia que eventualmente teria que vender seus pertences, na expectativa de que a taberna reabrisse e o ciclo voltasse ao normal. Mas ele sabia bem que a taberna não reabriria, pois o dono havia sido assassinado há alguns meses e o seu filho saído em busca de aventura, como ultimo pedido de seu pai.

"Egoístas" ele pensava sempre que lembrava disto. Havia para ele que a culpa daquilo tudo era do filho do dono da taberna, que abandonara seu posto como taberneiro, deixando encarregado dele um cliente confiável, quebrando a tradição e parte da economia de Conall.

Estava tomando seu café da manhã e lembrou da situação toda, quando uma requisição de memória inédita passava por sua cabeça. "Qual o ultimo desejo de minha finada mãe?"
Buscou na memória e lembrou-se de um ditado que ela repetia sempre: Nunca deixe o mundo lhe subjugar, se não já terá perdido. Ficou em dúvida por exatos 2 segundos se ele havia sido subjugado pelo mundo, e então caiu na real de que há muito tempo ele era completamente submisso a fatores externos para o bem da sua sobrevivência.

"Não como aqueles aventureiros" disse murmurando, ponderando com a boca cheia de nozes achocolatadas, cujo o gosto ele havia enjoado, mas não deixava-as de lado por falta de opção.

—Dois guerreiros, um médico, um bobo da corte  e um filhote de dragão — ele falava sozinho, com um punhado de nozes no meio da mesa em que sentava — A combinação perfeita para a liberdade.

Ele não se sentia livre, pensou. Parecia estar preso àquela casa e àquele quintal repleto de nozes. Gostaria de que fosse fácil para ele se desvencilhar de tudo e traçar seu caminho do zero, com glória e ouro em sua trilha e horizonte. Então passou a pensar sobre, mais e mais, e perceber como seria fácil mudar de vida, caso ele realmente quisesse. Animou-se com a ideia, não pensando muito sobre, e impulsivamente juntou tudo aquilo que poderia lhe ser útil em sua jornada: mochila, corda, utensílios de cozinha básicos, roupas, isqueiro, tochas, dinheiro...

Pisou para fora de sua casa determinado. Com suas  5 moedas de ouro, iria comprar uma bela arma, e talvez partes de uma armadura, a depender do preço, já que havia reservado 2 destas moedas para bancar eventuais estadias e mantimentos extra. Era hora de uma nova vida.

Tellúris - O conto de AlboOnde histórias criam vida. Descubra agora