Carta #1

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Bem e aqui estamos nós para mais uma sessão de sofrência com as nossas lesbiennes preferidas.
Espero que gostem ❤️

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Pierrette. Saboreio o nome nos meus lábios. Pierrette. Até o teu nome sabe a sedução. Como uma fumaça de um cigarro que nos enevoa os sentidos. Foi assim que me deixaste. Reduziste-me a um estado lastimável. Eu, que sempre vi em mim como melhor qualidade a altivez, vejo-me perdida neste beco sem saída em que sou obrigada a encarar de frente o que por tanto tempo quis evitar, negar, esquecer.

Foram poucas as vezes em que nos vimos. Agradeço por isso. Lamento por isso. Tudo em ti sempre me irritou. Esse teu sorriso lascivo, mesmo sem ser vulgar, os teus olhos
que conseguem ser doces como o chocolate que os pinta, e predadores de tão sinceros, certeiros. Sempre me ofendeu o teu andar que denuncia bem que sabes o efeito que tens nos outros, essa tua confiança exalada por todos os poros desse corpo longo e curvilíneo e esse teu subtil orgulho de saber que a tua vida sempre foi tua e de mais ninguém. O bamboleio dessas pernas que contra a minha vontade fez o meu peito falhar algumas batidas. Os teus cabelos em que quis enfiar o meu nariz para poder sorver todo o seu perfume. A linha do teu pescoço que tremi ao imaginar marcada pelos meus dentes e lábios. Nunca me atrevi a pensar na tua boca porque seria o fim da linha. Teria de admitir a mim mesma que estava irremediavelmente perdida. E ambas sabemos como gosto de uma boa luta. Mesmo que seja contra aquilo que sinto. Tudo em ti sempre me ofendeu porque tudo em ti sempre me tentou. O tanto que me repudiava a tua presença era o mesmo tanto que me fascinava.

Talvez tenha sido inevitável o que aconteceu no dia da morte de Marcel. Rio-me discretamente ao pensar a estupidez que foi começarmos uma luta por Jacques. Um homem que nem sequer amava, nunca amei. E, pela forma, como me beijaste, suponho que tu também não. Não sei dizer bem. Já tiveste mil amantes, viveste mil e uma noites ao lado de todo o tipo de homens (e muito provavelmente mulheres, embora não goste de pensar muito nisso). Posso ser pretensiosa, mas não ao ponto de achar que dentre todos eles, seria justo eu que escolherias como a tal, a única, aquela por quem esperaste a vida toda. É rídiculo pensar isso, é rídiculo querer isso.

A verdade é que Jacques era o meu passaporte de saída desta casa longe do mundo onde me via a sufocar. Os anos estão a passar, Pierrette. Cada vez passam mais depressa. E tenho medo. Medo de morrer sem nunca ter de facto vivido, envelhecer e perder a minha beleza, a minha força para aguentar toda esta loucura. Tenho medo de que um dia entenda que é tarde demais para tentar. Que toda a minha vida foi um verdadeiro desperdício, enterrada nesta mansão no meio do nada, com um marido que nunca amei (mesmo tendo existido uma altura em que eu tentei amá-lo, tentei mesmo), com uma mãe completamente disfuncional, uma irmã amargurada (e apaixonada pelo meu marido, não esquecer esse detalhe) e as minhas filhas...bem, tu mesma viste como é. Jacques era a minha rota de fuga de tudo isto, a minha oportunidade de ser livre. Não me estou a vitimizar. Sei que grande parte disto é resultado das minhas escolhas. Apesar de terem existido alguns momentos em que de facto me vi sem escolha, sem plano. Mas não foi pra isto que comecei a escrever.

A verdade é que tenho medo. Sinto esse dia cada vez mais próximo, quase consigo escutá-lo sussurrar no meu ouvido a sua presença aterradora. E a verdade é que se não tivesse tanto medo, não diria todas estas verdades que guardei há tanto tempo
em algum lugar do que restou do meu coração. Conheces Fernando Pessoa? É um grande poeta português. Ele também escrevia cartas e numa que escreveu a um amigo seu disse
uma frase que me tocou profundamente: "Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça". Será verdade?
Não foi isso que eu senti quando os teus lábios tocaram os meus, quando a quentura da tua boca recebeu a minha com a toda a sua glória. Aí, a vida não doeu. Naquele instante em que os nossos corpos se fundiram num só, em que te senti ali, por inteiro, em que deixei que os meus desejos mais secretos passeassem por aquela sala, eu consegui esquecer. Todas as dores, erros, angústias, vontades reprimidas. Sinto que te dei muito poder. Não me consigo repreender mais. Estou cansada. As dúvidas são as mesmas (ou até maiores), mas tudo o que aconteceu nos últimos tempos fez-me ver que o fingimento não me levou a lado nenhum. Então esta é a verdade. Aquele beijo significou algo para mim. Não sei o que foi para ti, mas para mim foi importante. Aqui está a verdade. Não sei se algum dia lerás esta carta, mas só de poder escrever isto, colocar isto registado em algum lugar já me faz sentir que valeu a pena. Porque pelo menos dentro daquele beijo eu soube, nem que fosse por alguns segundos, como é sentir-mo-nos vivos. Talvez para ti tenha sido só uma brincadeira, um experimento, sei lá. Tento ignorar a leve tristeza que ameaça invadir-me com essa possibilidade.

O mais provável é que nunca se repita. Tento também ignorar a voz interna que torce para que eu esteja errada. Meu Deus, eu vou enlouquecer. Maldita sejas, Pierrette.

Fernando Pessoa também dizia que "Tudo vale a pena se a alma não é pequena". Foi isto que senti quando trocamos aquele beijo, que por momentos a minha alma não era tão pequena, tão preenchida de artíficios e mesquinharias.

Até consigo imaginar o teu sorriso triunfante e satisfeito se um dia lesses isto que acabei de escrever. Pronto, já chega. Também não estás à espera que te agradeça, não é? Era só o que faltava.
Por ora, é tudo.

Gaby


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Tu, sim tu, leitora devota que estava doida por mais uma história destas duas, deixa um comentário, que pode ser que assim a Gaby sinta um ímpeto maior para continuar a escrever ;)
Digam o que acharam e à bientôt!

L'automne 37Onde histórias criam vida. Descubra agora