Carta #2

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Aqui vai mais uma carta. Sessão de nostalgia da Gaby, sim ou claramente ?

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Foi em 37. No Outono de 37. Passeava pelos campos de Toulouse (que apesar de tudo continuo a amar), observando como o sol ia pincelando a paisagem. Uma imensidão verde que nunca vi igual (também não é como tivesse ido assim a tantos lugares, não é) apresentava-se diante dos meus olhos e lembro-me de um dia me teres dito que os campos de Toulouse eram o que dava cor ao meu olhar. Talvez seja verdade. Talvez longe daqui, perca a cor, o rumo. Ou talvez não. Não há nada que corroa mais do que a incerteza.

Adorava caminhar sozinha, sentir a paz que só a natureza me consegue dar. Nunca gostei de ruído, de multidões, de poluição. Para mim, tão pouco bastava para ser feliz. Estar deitada sobre a relva, olhar o céu, ter uma manta pra me cobrir e ter alguém que amo ao meu lado. Acho que não pedi muito à vida. E ela ainda menos me deu. Alain, o pai de Suzon, tinha morrido há pouco tempo, num acidente de carro. A sua perda sempre foi um tema delicado para mim. Ele foi o meu primeiro amor, um amor de Verão e que hoje, pensando bem, sinto que não teria durado mais do que uma estação. Há amores que são assim. Nascem com prazo de validade.

Eu ainda não sabia da minha gravidez e passeava melancólica e estranhamente tranquila, não porque a morte de Alain não me doesse, mas porque a liberdade que possuía fazia-me sentir em paz. Há várias pessoas que não valorizam a sua liberdade. Não é o nosso caso, Pierrette. Sei que pelo menos nisso, estamos de acordo. Sempre soube que era livre e usava essa liberdade como um amuleto ao peito, um talismã que me curava de todo o mal que me pudesse atingir. Era como naquele momento. Pensava no quão terrível era a perda do meu primeiro e frágil amor, mas outro pensamento ainda mais sonante pairava na minha mente: estás viva e és livre, faz alguma coisa com essa liberdade, não a desperdices. A minha irmã, por exemplo, já não é assim, nunca foi. Viveu sempre demasiado enclausurada nas suas próprias fantasias, protegida debaixo da asa da minha mãe, que lhe encurtava cada vez mais os sonhos e lhe exponenciava as fragilidades. Há tanta coisa que não consigo perdoar à minha mãe, sabes?

O ar era fresco e doce, pautado pelos leves aromas das uvas que brotavam em todos os cachos que surgiam na estrada. A vida era tão simples. E, de repente, tudo mudou. Um carro cinzento, moderno para a época, começava a surgir no meu horizonte. Foi quando o meu coração sentiu um sobressalto. O horizonte era no caso uma ribanceira acentuada e se não fizesse alguma coisa, quem quer que fosse que estivesse ali dentro não iria terminar nada bem. Eras tu. Não fazia ideia do me esperava. Não poderia sequer imaginar o quanto este encontro, este estranho acaso mudaria a minha vida. Corri pelos atalhos que conhecia e quase que caía junto contigo aquele precipício. Contudo, conseguimos com que saísses do carro sã (não muito, na verdade) e salva. Só aí pude de facto analisar-te com clareza. Sei que sabes de todos estes detalhes, mas escrevê-los é uma forma de terapia, uma maneira que encontrei de organizar as minhas memórias e tentar manter alguma da pouca lucidez que ainda me resta.

Eras (e continuas a ser, talvez ainda mais) a mulher mais bela que já vi. Os teus olhos de chocolate, a tua pele de pêssego, a boca carnuda e bem delineada pelo batom vermelho que sempre foi a tua imagem de marca. De repente, senti-me uma maltrapilha ao teu lado. Parecias uma aristocrata, uma princesa. O teu vestido branco e preto (que já era bem a tua cara, diga-se de passagem) ajustado ao teu corpo que já tinha todos os traços da feminilidade contrastava em tudo com a simplicidade e até certa candura do meu vestido leve e florido que esvoaçava ao sabor da brisa. Era pobre, mas ao contrário do que toda a gente pensa (incluindo tu), nunca me importei com isso. Como já disse, era uma miúda que esperava pouco da vida. Não porque a vida não me animasse ou não tivesse gosto por ela. Simplesmente entendi que por mais cliché que pareça, a felicidade está mesmo nas pequenas coisas. São os detalhes do dia-a-dia que me trazem a maior alegria. O desabrochar de uma flor, o afago de um animal, o riso de quem amamos, cantar a nossa música preferida, são essas coisas que compõem a verdadeira felicidade. Nunca quis ser rica. Nunca quis ser uma dama. Porém, bem sei que a imagem que criei para os outros faz-me parecer uma dama de gelo, uma enorme snob. É triste, honestamente. É triste que ninguém me conheça pelo que sou, mas talvez seja uma daquelas coisas que já não vou a tempo de mudar.

O teu cabelo levemente ondeado, que se compunha em cascatas castanhas e que dava vontade de tocar de tão macio que parecia. O teu sorriso ao olhar-me cruzou-se com o sol e até hoje me sinto cega com a lembrança de tamanha luz. Era tão jovem para entender, Pierrette. Mas foi ali, naquele preciso instante que um amor sem prazo de vencimento invadia o meu peito. Para piorar, a tua voz era do mais puro mel, de um tom tão intoxicante que senti-me atordoada cada vez que nos falamos. Sem nos apercebermos (pelo menos eu não me dei conta) continuávamos agarradas uma à outra e não havia maneira de nos separarmos. Dava tudo para saber o que pensaste de mim nesse momento em que ficamos perdidas no olhar uma da outra. Mal te conhecia e só o pensamento de que se não tivesse chegado a tempo tu poderias não estar mais aqui preencheu-me de pavor. É curioso como conseguimos viver tanto tempo sem alguém e, do nada, esses mesmos desconhecidos passam a ser tudo para nós.

Estavas um pouco desgrenhada e sorrio porque foi assim que também ficaste da última vez que nos vimos, apenas por outro motivo (e que motivo). Quando recuperei a voz respondi aos teus agradecimentos e todas as tuas perguntas. Nunca entendi bem o que é que tanto te interessava em mim, mas denoto que ainda existia um traço de inocência nos teus olhos naquele momento. De quem ainda queria acreditar em algo. Aperta-se-me o peito ao pensar no que te fizeram para que te tornasses completamente descrente nos sentimentos alheios. Poderias agora afirmar que também sou assim, mas não é verdade. Eu pareço ser assim. Mas ainda sonho, no fundo de mim ainda há esperança. Muito debilitada, mas que sempre ficou. Como se nas profundezas desta aristocrata inatingível que todos vêem, ainda existisse um pouco daquela moça que um dia passeava descalça pelos campos de Toulouse. Será que no fundo ainda há uma alguma réstia de esperança em ti, minha querida?

Subitamente, a lembrança da doçura do teu olhar deixa-me sem defesas. Estão a bater à porta. Parece que tenho de voltar à realidade, já que por mais que queira, ainda não posso viver só de memórias.

Por ora, é tudo.

Gaby


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A gaby tem-se sentido muito só sem o seu amor, então comentários são sempre muito bem-vindos ;)
Espero que tenham gostado mes chéries.
Bisous et à bientôt ❤️

L'automne 37Onde histórias criam vida. Descubra agora