Carta #7

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Gaby levanta um pouco mais do véu que esconde o passado que teve com Pierrette.

É bom realçar que isto é meramente o ponto de vista da Gaby, não quer dizer, de todo, que as coisas tenham sido realmente assim. Isto é a sua perceção do que viveu, mas não sabemos a perspetiva da Pierrette (pelo menos por enquanto...).

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Jean-Claude. Ou seria Jean-Pierre? Sei que começava com Jean o nome dele. Tinha os olhos azuis, o sorriso charmoso, todo aquele ar típico de "sim, eu vou partir o teu coração e tu sabes". Se isso já me irritaria normalmente, então ter de aguentar ver-vos juntos era outro tipo de teste à minha paciência. Ele era o sonho de qualquer mulher, claro que tu escolhê-lo-ias. Que tinha eu pra te dar? Ainda hoje sinto um aperto no peito quando me vem a lembrança de vocês os dois juntos. Afinal, o que é que correu mal? Vocês faziam o par perfeito, não devia haver casal mais bonito em Toulouse. E ele podia levar-te a qualquer lugar, a Paris (e eu bem sei como amas Paris), Veneza, Tóquio, Rio de Janeiro. Podia dar-te tudo, bastava pedires. Nunca tive chances. Custa muito amar alguém que nunca nos vai escolher, que nem sequer nos vê como uma opção.

É curioso que foi justo no dia em que decidi contar-te a verdade, declarar o meu amor, que tu disseste que ias embora. Justamente no dia em que eu tinha concluído que aquela situação era insustentável, que não podia mais mentir a mim mesma, tu decidiste também que não querias ter mais nada haver comigo. A tua frieza assemelhou-se a um ferro vivo no meu coração. Já era tão frágil a minha fé no amor e tu acabaste com ela naquele preciso instante. Doeu, doeu como nunca nada tinha doído antes (ainda dói). Foi aí que com imenso terror, percebi que era porque nunca tinha amado alguém como te amava a ti. Tudo isto veio-me à mente estes dias porque encontrei uma caixa de textos meus antigos e trouxe-a para me entreter aqui nesta minha temporada em Biarritz.

Escrevi uma prosa acerca do dia em que nos despedimos. Nunca consegui entender o teu distanciamento, aquela gelidez tão pouco característica do teu temperamento. Mal me olhaste nos olhos. Porquê? Terei feito alguma coisa que te magoou assim tão irreparavelmente? Se assim foi, porque não me confrontaste? São 20 anos a carregar estas questões comigo, a remoê-las vezes e vezes sem conta. Então porque é que me beijaste? O que é que foi aquilo que aconteceu naquele dia de Natal? Para é que fizeste aquilo? Para me castigar, torturar, consumir? Os teus lábios acetinados ainda estão sobre os meus e sou completamente incapaz de afastar de mim a anamnese da tua língua quente que fez da minha boca a sua casa. Apetece-me bater-te por este desejo incumprido que plantaste dentro de mim. E para quê, ah? Era só isso que gostava de perceber. Pode ser que enlouqueça antes e estes assuntos deixem de atormentar-me. Sei que se está a chegar a um ponto sem retorno quando a maior esperança de alguém é enlouquecer para melhorar dos seus males.

Ressenti-me contigo. Ressenti-me por te importares tão pouco, por devotares tão pouco da tua atenção no dia em que me disseste adeus. Ressenti-me porque não me quiseste. Ressenti-me porque mais do que o meu orgulho, era o meu coração que estava (está) ferido. Não me consigo lembrar de um dia em que não tenha sentido algum tipo de desalento. Detesto como isto soa vitimista, todavia não consigo encontrar outra forma de dizê-lo. A tua inesperada visita, todos os esqueletos que saíram do armário da nossa alquebrada família, o nosso beijo, tudo isto destruiu qualquer defesa que tivesse para contigo. O calor do teu corpo derreteu a minha aparente frieza. O teu olhar achocolatado fez-me questionar porque é que algum dia te quis odiar, como fui capaz de viver tanto tempo sem a tua presença. No entanto, rapidamente me lembrei que não foi escolha minha. Tu quiseste partir. Sempre foste do mundo, não é verdade? E é muito duro pertencer a alguém que nunca será de ninguém.

A voz de Vera Lynn ressoa pela biblioteca enquanto o disco bamboleia pela vitrola. "We'll meet again", diz ela, com uma certeza tão portentosa que quase me faz crer que isto se aplica a nós.

"We'll meet again

Don't know where

Don't know when

But I know we'll meet again some sunny day

Keep smiling through

Just like you always do

'Till the blue skies drive the dark clouds far away"

As cortinas azul-claro estão afastadas e tanto o céu como o mar recebem-me pela janela com a sua magnificência habitual. Ao contrário do que diz na canção, aqui o céu não tem nuvem alguma. Quem me dera partilhar da mesma luminosidade deste firmamento tão belo. Gostava de continuar a sorrir, mas não tenho esta convicção de que não importa onde, nem quando, nós voltaremos a ver-nos. Será que sim? Se por um segundo eu tivesse essa confirmação, ah, seria tão feliz. Nem que fosse só por esse átimo de tempo. Queria tanto acreditar que num dia de sol como este, quiçá numa praia tão bela quanto, eu também te encontraria, nem que fosse por um acaso, estranha coincidência do destino que acaba por nunca o ser.

Contudo, poderia ser no meio da chuva, na rua mais feia de França, não importaria. Que me importa a rua, o dia, o clima? Só queria ver-te. Ah, esta maldita vontade de chorar. Quando é que foi que me tornei tão emotiva? A verdade é que não me tornei. Só voltei a sê-lo. A Paulette está a bater à porta. Parece que esperou o fim da música para fazê-lo. Talvez não seja ela. Talvez sejas tu. Sei que não faz sentido, que não há lógica nenhuma que me leve a pensar isto. Ainda assim, é o pensamento que me invade ao ouvir as pancadas secas na porta de madeira pintada. Sinto até uma certa ansiedade se queres saber. Ninguém disse que amar fazia sentido. Mas dá sentido. E é isso que importa.

Adeus Pierrette, (ou até já)

Gaby

"We'll meet again

Don't know where

Don't know when

But I know we'll meet again some sunny day"


A prosa da Gaby:

Houve uma despedida

Foi triste

Afinal, todas as despedidas o são

ou não?

Perdemo-nos uns dos outros como num baile, numa festa

Uma perda quase despercebida e que parecia durar só um instante

E do instante fez-se a vida toda

Engraçado não termos medo dos segundos

Quando são eles que fazem o tempo

Queremos tudo em grandes moldes

Só as medidas de enormes comprimentos

A despedida foi pequena

Até que o tempo foi passando

E doeu

Tudo é inconstância

Nem por isso deixa de ser vida

Houve uma despedida, um tremor

Não chegou a ser partida, só um triste sussurro

Calado torpor


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Espero que tenham gostado e à bientôt <3

L'automne 37Onde histórias criam vida. Descubra agora