Carta #6

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A Gaby está triste. É só isso. Tristeza. É só o que temos nesta carta.

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Mamy teve um ataque do coração. A minha irmã ligou ontem a avisar. Disse que foi repentino, que ela não se tinha queixado de nada (e nós bem sabemos como ela gosta de desfiar o imenso novelo das suas maleitas sempre que tem oportunidade), mas que estava bem e já se estava a recuperar. Perguntei se era preciso algo, se queria que fosse ter com ela, mas recusou. Ainda assim, enviei dinheiro. Para alguma coisa esta malfadada fortuna há de servir. Pedi-lhe que me ligasse mais vezes. Detesto pensar que só nos falamos quando alguma desgraça acontece. Ela tentou aparentar firmeza, mas denotei um leve tremor na sua voz e senti o peito comprimir de angústia. Apesar de tudo, é a nossa mãe. E apesar de tudo, ainda existe uma réstia de amor por ela dentro de mim. Parece que dentro de Augustine também.

Lembras-te quando a conheceste? A memória pode não ser-te importante, por isso é bem possível que não. Porém, eu recordo-me perfeitamente. O seu olhar analítico, reprovador, de quem te condenava ainda antes de saber o teu nome. Nunca gostei da forma como ela olhava pra ti e ironia das ironias, aprendi com ela a reprovar-te para desviar a atenção dos meus verdadeiros sentimentos. O mais curioso foi que mal ouviu o teu apelido, toda a sua expressão mudou. Leblanc. Bastou dizeres isso e foi como de súbito tu fosses uma filha querida retornada a casa depois de muito tempo. Mamy prontificou-se a todo o tipo de gentilezas, seguiu o protocolo da boa educação exemplarmente e até tu ficaste intrigada com a imprevista mudança de humor da minha progenitora. Eu ainda não sabia a razão da sua cortesia, mas sabia muito bem que não era de todo inocente.

Claro que hoje sei que ela estava de olho no património da tua família. Afinal, os Leblanc eram uma das famílias mais ricas de França e com certeza a mais poderosa e influente de Toulouse. Não está perdida em mim a ironia de que foi graças a ti que ela conseguiu ter acesso à tão almejada elite, a esse mundo de sumptuosidade e prestígio, mas mal teve sazão quis livrar-se de ti. Com certeza pensou que assim seria uma herdeira a menos. É triste pensar que a pessoa que mais me deveria ter encaminhado na vida, aquela que deveria ser o meu maior exemplo, o meu porto de abrigo, tenha sempre olhado para mim como um meio para atingir um fim, uma espécie de picareta que a levaria até à arca do tesouro. Ela matou o meu pai. Sabias? Eu não sei se alguma vez te contei. Eu sempre desconfiei, mas houve um dia em que após ter bebido demais me confessou. Lembro-me de como quis mandá-la embora da minha vida, agredi-la, de lhe causar a mesma dor que havia sentido quando perdi o meu pai. Mas de que adiantaria? Para que serviria tudo isso agora? Nada o traria de volta. Nunca mais. E nunca mais é tanto tempo para se sentir falta de quem amamos.

Perdoa-me pelas gotas de água caídas sobre o papel. Guardei demasiado tempo todo este luto. Ficou trancafiado dentro de mim e agora as minhas emoções são uma avalanche sem direção que ataca em todos os sentidos. Desculpa se te maço com as minhas cartas, se não estás interessada, se tudo isto te incomoda. Perdoa-me Pierrette. Sou tão egoísta. É só que...não tenho mais ninguém. Estou tão só. Tu sempre foste a única pessoa com quem pude ser verdadeira. Verdadeiramente eu. Sei que não estou no direito de te pedir nada, mas vou fazê-lo mesmo assim. Olha, nem precisas de ler as cartas. Deita-as fora mal as recebas (se é que as recebes, se é que o endereço que tenho é realmente o teu) se isso for o melhor para ti. Deixa-as acumular na caixa de correio até os bichos tomarem conta delas e destruírem-nas. Não importa. Mas deixa-me continuar a escrever-te. Deixa-me viver na ilusão de que de uma certa forma estou a falar contigo e que mesmo de longe (tão longe, minha querida) tu me ouves. Considera isto como a tua boa ação do ano, da década, sei lá. A solidão torna-nos patéticos, restos da pessoa que éramos. A Gaby de há um ano atrás ficaria em choque de tal maneira ao ver esta que se apresenta agora que talvez nem soubesse como reagir. Mais uma vez perdi-me no meu rol de introspeções. Perdoa-me. Eu queria perguntar-te como é que estás, só que duvido bastante que me vás responder ao que quer que seja.

À minha frente está um Matisse, mais precisamente a pintura "Le chat aux poissons rouges". A minha mãe adora este quadro. Até consigo entender. No caso ela seria o gato a tentar apanhar os peixes. Claramente nós somos os peixes. Rio-me ao pensar que nem assim é tão mau porque o vermelho sempre te ficou muito bem. Partilho com os peixes essa mesma apneia, uma claustrofobia incessante. Não importa onde vá, o que faça, sinto-me como um peixe dentro do aquário a fugir eternamente de um gato incansável na sua demanda. Quiçá o gato nem seja a minha mãe. Quem sabe o gato seja a vida. Perco toda a vontade de rir prontamente. Porque seria cómico...se não fosse verdadeiramente trágico.

Até uma próxima, Pierrete.

Gaby


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Espero que tenham gostado de mais uma sessão de sofrência.
Bisous et à bientôt mes amours <3

L'automne 37Onde histórias criam vida. Descubra agora