Carta #4

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E vamos à pergunta que não quer calar: e depois da luz se apagar, o que aconteceu? Quando a cortina se fechou como é que aquelas 8 mulheres seguiram as suas vidas? É o que Gaby tenta explicar aqui.

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Faz um mês que o Marcel morreu. Que se matou, na verdade. Não sinto falta dele. Quando mais precisei dele, nunca esteve aqui. E depois de tudo o que descobri acerca do meu querido marido, seria impossível lamentar a sua partida. Lamento outras coisas. Lamento o mal que fez às minhas filhas, o mal que me fez. Será que também te fez algum mal?

Lamento que a minha irmã me ressinta por causa dele. Lamento que algum dia tenha acreditado que ele poderia ser a escolha certa. Lamento ter achado que ele me respeitaria, que cuidaria de mim e que a minha amizade e gratidão pudessem ser suficientes. Lamento ter-me esforçado para amá-lo, de cada vez que tentei abrir o meu coração. Lamento ter deixado que ele me reduzisse a isto, que me fizesse acreditar que sem ele, não conseguiria ter um futuro. Tudo isso eu lamento. Mas não lamento que esteja morto. Eu sei, que apesar de tudo, é teu irmão. Mas não deixa de ser um homem odioso.

Esta casa, que tem algo de tão ancestralmente trágico, encontra-se extremamente silenciosa. A minha mãe e a minha irmã partiram para Marseille, com a minha mãe a dar o argumento de que a brisa do mar lhe faria bem aos ossos. Acreditas nisto? Até me dá vontade de rir perante o seu cinismo. Porque, evidentemente, essa é a razão pela qual elas se iam embora. A Augustine surpreendeu-me com o seu olhar algo melancólico e o seu abraço que mesmo hesitante, foi sentido. Sussurrou-me em segredo que se precisasse de alguma coisa, ela tinha apontado o seu novo endereço na minha agenda. Senti as lágrimas chegarem com força e fúria perante a gentileza verdadeiramente inesperada da minha irmã. Quiçá o facto de ter descoberto como é que o nosso pai morreu tenha mudado as coisas. Quem sabe aquele fatídico dia de Natal não tenha trazido só coisas más. Movida por uma coragem que acreditava há muito ter perdido, confessei-lhe que nunca achei que ela fosse feia como lhe tinha dito nesse dia. Sei os complexos que ela sempre teve com a sua imagem e foi cruel da minha parte usar justo isso para a atingir. No entanto, estava magoada (e ainda estou, não vou mentir) porque durante todos estes anos ela preferiu tomar partido do Marcel. Ressentiu-se comigo por estar casada com o homem que ela queria. Como se lho tivesse roubado, como se eu pudesse saber antes que fosse tarde demais. Não perdeu nada, pelo contrário, e tudo aquilo que soube há um mês atrás parece ter destruído a imagem de príncipe encantado que tinha dele. Parece que afinal ainda há esperança que certas coisas melhorem.

Podes não acreditar, mas disse-lhe mesmo que, para mim, é linda. Os olhos brilhantes de emoção da minha irmã que em tanto me lembraram de como era em criança deram-me a indicação de que tinha feito a coisa certa. Não é como tivesse mentido. Ela sempre foi muito bonita, mas todas as suas inseguranças fizeram com que se escondesse por detrás daquela personagem púdica e austera que criou ao longo dos anos. O facto de ter de reprimir o seu amor pelo teu irmão em muito contribuiu para que ela se fosse fechando cada vez mais. Houve um tempo em que não era assim. Houve um tempo em que não existia este abismo imenso entre nós e que éramos irmãs, irmãs a sério. E dói-me pensar que tudo isso se perdeu por causa do Marcel. Se bem que sei que ele não é o único culpado. Há vários elementos a considerar nesta equação.

Madame Chanel foi-se embora sem se despedir de mim. Gostava de ter sido capaz de lhe ter pedido desculpa, de lhe agradecer por tudo o que fez por esta família. No entanto, a minha coragem não chega para tanto. E se for para ser completamente honesta, sei que a minha reação exagerada à sua revelação deveu-se muito mais ao ciúme que senti ao saber do vosso caso do que propriamente ao facto de ela gostar de mulheres. Jamais admitirei isto em voz alta, nem sob ameaça de tortura. Espero, contudo, ter ainda a possibilidade de acertar as minhas dívidas com Madame Chanel. Mas isso é um assunto para pensar mais tarde. Sinto-me completamente drenada, extenuada e não sei até quando vou aguentar.

Louise partiu para Nice. Não lhe posso dar aquilo que deseja de mim. Posso ter muitos defeitos, mas não poderia mentir, fingir que é ela a mulher que quero, desejo...amo. Porque não é. Há muitos anos que o meu coração está ocupado, prisioneiro de um certo alguém. E esse alguém não é Marcel. Nunca foi. Pode ser que a minha ex-empregada encontre alguém que possa corresponder aos seus sentimentos, que preencha todas as suas expectativas. Imaginaria mais facilmente Louise a ir para Paris, parece-me uma cidade mais adequada ao seu gosto, algo mais cosmopolita, eletrizante...tentador.

Não sei se vou vender a casa. Ainda não consegui falar com as minhas filhas sobre isso. Suzon decidiu ficar por uns tempos connosco e não podes imaginar como lhe sou grata por esse seu sacrifício. A minha doce e generosa menina. Calculo como lhe deve ser custoso estar nesta casa e sei que só o faz por mim e por Catherine. Sei que da sua parte a casa já teria sido vendida, já estaríamos bem longe daqui. O problema não sou eu, nem ela. O problema é que a minha filha mais nova, mon petit diable, também é herdeira do património de Marcel e tem uma palavra a dizer. E se há pessoa que o teu irmão amava, Pierrette, essa pessoa era Catherine. Amor esse que era correspondido. Acho que Suzon sempre foi mais ligada a mim, enquanto Catherine preferia o pai. Não há ninguém que esteja a sofrer mais com a sua morte do que ela. O meu ódio por ele aumenta ainda mais. Acabou com a vida na frente da sua própria filha. Ela tem pesadelos quase todas as noites. Acorda sempre empapada de suor, com a respiração fraca e a pedir pelo pai, que só quer o pai. É tão duro não puder dar aos nossos filhos aquilo que eles precisam para serem felizes. Por isso todas as noites tenho de acordá-la para a realidade, mais fria do que a neve que ainda se vê lá fora, de que o seu pai não está, nunca mais vai estar. Ela chora, chora muito. Não sei se ainda tem raiva de mim, que sentimentos me devota, mas a verdade é que em todos esses momentos em que parece estar a perder o chão, deixa-se ser envolvida pelo meu abraço. Não sei se será simplesmente por exaustão, mas gosto de pensar que isso é um bom sinal.

Daquele pequeno furacão que ela era encontro muito pouco. Está calada, fechada em si mesma e no seu luto, demasiado imbuída na sua perda. De vez em quando olha para mim com os seus olhos de água com tamanha confusão e parece que grita por ajuda, com uma expressão tão perdida como um cego no meio de um tiroteio. É um olhar muito familiar. É um olhar de quem está a tentar entender. É o olhar de alguém que se viu no meio de uma tragédia tal que não sabe como se defender de tudo o que a atingiu. Também já perdi o meu pai e não foi de forma natural. Não é a mesma coisa, bem sei, mas sou capaz de compreender um pouco do que está a sentir. Nunca rezei. Nunca me fez sentido acreditar em Deus, por mais que a minha mãe tentasse fazer de mim uma fervorosa crente (ironia das ironias, visto que no fundo ela ia contra muitos dos seus mandamentos). No entanto, quando vejo a minha filha neste estado, peço a alguma entidade divina que caso exista, ajude a minha menina. Tenho medo que Catherine esteja a mergulhar num profundo estado de melancolia. Por isso, decidi mudar de ares. Pode não ajudar nada, mas piorar será muito difícil da maneira que as coisas já estão péssimas.

Amanhã partimos para Biarritz por uns tempos. Nós as três e Paulette, uma moça que arranjei para substituir Louise e ajudar nas tarefas da casa. O nome parece-se com o teu e sempre que tenho de chamá-la para alguma coisa imagino que virás tu no seu lugar. Nunca acontece, mas não consigo evitar. Por mais que doa a tua ausência, o meu peito já está algo habituado a ela. Afinal, não é a primeira vez que me abandonas. Já me dói a mão, o que pode significar uma de três coisas: já não estou habituada a escrever tanto, estou a ficar velha ou é hora de parar. Talvez todas as opções estejam corretas. Enfim, tenho de fazer as malas. Quando voltar a escrever-te já será em Biarritz.

À bientôt, Pierrette.

Gaby


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Comme d'habitude espero que tenham gostado.
Bisous et à bientôt <3

L'automne 37Onde histórias criam vida. Descubra agora