Um mergulho nas memórias da nossa amada Gaby.
Usei de toda a minha licença poética e fingi que a música "Time Heals Everything" da Bernardette Peters saiu em 1958 (o ano em que ambientei a ação) invés de 1974. Aconselho a que ouçam enquanto lêem esta carta, pelo menos na parte em que a letra começa a aparecer.
Porque não quero que nada vos falte: https://youtu.be/SU2Tc--gAhY_________________________________________________________
O meu pai tinha muitos livros. De vários autores, em muitas línguas e de todos os tamanhos. Desde muito cedo aprendi a mergulhar no mundo das histórias, da literatura e da imaginação. Continua comigo esse assombro de saber que na minha mente posso ser o que quiser, viver num mundo só meu. Extraordinário esse poder dos que conseguem imaginar, não é? E tu Pierrette, que imaginarás? O que será que habita a tua enigmática psique?
Tudo o que aprendi foi graças ao meu pai. Todas as línguas que sei, os autores que conheço, os livros que tive o privilégio de ler, tudo isso foi-me proporcionado por ele. Já são muitos os anos sem ele, mas ainda me lembro como era. Tinha os cabelos com pequenos cachos levemente acinzentados pelo tempo, os olhos castanhos e quentes, preenchidos de ternura. Disse à Suzon que os seus olhos eram do pai, mas não seriam do seu avô? Parece que nunca saberemos, não é.
Das poucas coisas que me unia à minha irmã era esse gosto pela leitura, o amor pelas palavras. Não importava o que tivesse acontecido naquele dia, o momento em que o nosso pai nos vinha contar uma história era sagrado. Quando já éramos mais crescidas, eu, como irmã mais velha, passei a contar a história. Uma noite eu escolhia o livro e outra noite era a Augustine. Podíamos ter tido a pior das discussões, estar de costas voltadas o dia todo que naquele singelo momento tudo se tornava secundário. Ali, sob aquela lamparina trémula, quase sem óleo, mergulhávamos num mundo novo onde éramos princesas, cavaleiras, bruxas, heroínas ou vilãs. Dentro daquelas páginas o tempo era nosso e ali éramos felizes. O jeito meio desajeitado da minha irmã em cima da cama que parecia sempre tão grande para ela enternece-me o coração. Lembro-me de como os seus olhos azulados, quais luzes de natal, emitiam um brilho de fascínio. A forma como ela colocava continuadamente os cabelos ruivos rebeldes atrás da orelha para ouvir tudo com atenção. Eu esforçava-me para contar o conto da melhor e mais épica forma possível. Dava uma voz diferente a todas as personagens e tentava ser uma narradora à altura do julgamento da minha sempre exigente irmã.
Era o meu presente para ela. A minha forma de compensá-la de qualquer outra coisa que pudesse faltar-lhe. O meu modo de pedir-lhe desculpa caso tivesse feito algo de mal. Sempre me redimi nas palavras e foram elas o meu conforto, as minhas únicas confidentes. Penso no quão trágica seria a minha vida sem elas e o meu peito ferve de gratidão para com o meu pai. Simon, era assim que ele se chamava.
Várias foram as vezes em que a minha mãe insistiu para que se vendessem os livros, para que o meu pai parasse de nos colocar fantasias na cabeça porque o mundo lá fora não é igual ao que vem nos livros. Agradeço ainda mais por ele não a ter ouvido. Como era o teu pai? O Marcel nunca falou sobre esse assunto comigo e, honestamente, quanto maior era o abismo entre nós, menos vontade tinha de saber sobre ele. Mas sempre quis saber mais de ti. Não é correto, mas várias foram as vezes em que me vi curiosa sobre o teu passado, a tua vida, como estarias e o que andarias a fazer. Hoje é ainda pior. Penso todas as noites e dias por onde andarás e será que há alguma fração do teu tempo que gastas a pensar em mim. Uma música que saiu há pouco tempo toca na rádio e passeia pelo quarto, deixando o ambiente ainda mais melancólico.
"Time heals everything
Tuesday, Thursday
Time heals everything
April, August
If I'm patient the break will mend
And one fine morning the hurt will end"
O tempo não curou nada. Tudo está aqui, em carne viva, todas as dores, todos os ressentimentos bem marcados no meu peito e memória. Cada silêncio, cada lágrima escondida, cada falso sorriso que fui forçada a dar. Todas as vezes que pensei em fugir, mas não tive coragem. Todos os dias em que amaldiçoei o instante em que te conheci. E todos em que agradeci porque assim pude saber o que era amar verdadeiramente, o que era ter o sangue a ferver e o coração a pulsar de emoção. Vejo o teu olhar malicioso a fitar-me e toda a minha pele arrepia e não sei que faça para arrancar esta vontade de ter-te do meu ser.
"So make the moments fly
Autumn, Winter
I'll forget you by
Next year, some year
Though it's hell that I'm going through
Some Tuesday, Thursday
April, August
Autumn, Winter
Next year, some year
Time heals everything"
Passaram-se os dias, passaram-se os meses. Todas as estações vieram e os anos seguiram-se cada vez mais vorazes e simultaneamente vagarosos. Nada mudou. Só se acentuou esta ausência, esta ânsia de algo que não sei muito bem o que é. Talvez seja a liberdade. Há muito tempo que não sei o que é ser livre. Não deve haver maior tragédia do que esquecer de como é ser livre. Foi o que me aconteceu. Quem me dera ser livre como tu, Pierrette. (Quem me dera ser livre contigo). Dizem que o amor é assim: liberta-nos, mesmo que também sejamos cativos. Onde estás agora? Sentirás a minha falta? Será que o tempo te fez esquecer? Será que só eu fiquei presa a um passado cada vez mais distante, uma névoa a que me tento agarrar desesperadamente para me recordar de que já fui muito melhor, muito mais forte do que sou? Será que só a mim o tempo não curou?
"Time heals everything
But loving you"
Solto um riso pelo nariz. Parece que afinal a canção diz mais de mim do que poderia pensar. Acendo um cigarro e enquanto este vai definhando ao ritmo das minhas tragadas, percebo que somos todos criaturas à espera de sermos acendidos, invadidos por uma chama. Inflamaste a minha alma, contudo é um fogo que persiste mesmo que nada faça para o manter. A única resposta que encontro é que talvez não queira ser curada do meu amor. A cantora dita os últimos versos com toda a sua força. Decido acompanhá-la e dedicar-tos secretamente:
"Time heals everything
But loving you"
Porque a verdade, minha querida, é mesmo essa. O tempo pode curar tudo, menos o amor que sinto por ti. Meu Deus, que coisa mais patética de se dizer. Penso no quanto ririas se lesses isto. Enfim, por mais patético que possa ser, não deixa de ser verdade. E pelo menos aqui, sobre este papel, só escrevo a verdade. Como vês, não menti quando disse que era nas palavras que encontro a minha redenção. Já que não me posso render a mais nada (ou ninguém), aqui está. Posso contar-te um segredo? Não sei se quero que o tempo me cure.
Gaby
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Espero que tenham gostado e não se esqueçam de comentar para eu saber qual é a vossa opinião.
Bisous e à bientôt ❤️
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L'automne 37
Fanfiction"Foi em 37. No Outono de 37. A vida era tão simples. E, de repente, tudo mudou. Não fazia ideia do me esperava. Não poderia sequer imaginar o quanto este encontro, este estranho acaso mudaria a minha vida. Era tão jovem para entender, Pierrette. Mas...