Curar certas feridas não é fácil. Mas não é impossível. Um pouco de fé para variar um pouco.
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Hoje foi a primeira vez que Catherine quis sair de casa. Não imaginas a felicidade que acometeu o meu peito quando ela pediu a minha companhia. Fomos passear pela praia. A brisa calma da noite acompanhou-nos na caminhada e todas as estrelas (para além das luzes dos candeeiros) refletiam na branda água que pintava a areia. O luar banhou o rosto da minha filha e os seus olhos ganharam um brilho distinto de azul turquesa. Os seus cabelos estão mais longos do que a última vez que a viste. Foi nesse preciso momento que me apercebi que a minha menina já não é assim tão menina. Como é o que tempo consegue ser tão veloz?
Tentei mantê-la debaixo da minha asa, logo ela que jamais se subjugou a nada. Admiro essa sua coragem, a sua disposição de dizer sempre o que pensa, agrade ou não quem esteja a ouvir. Impressiona-me essa energia (ausente agora infelizmente), essa fúria de viver, de querer ver tudo, saber tudo, sentir tudo de uma vez. De onde terá vindo isso? De mim ou Marcel não foi com certeza. Será que foi de ti? Em alguns momentos olho para ela e vejo-te a ti. A ousadia certamente é a mesma. Tenho pena que não tenham convivido mais. Alguma vez pensaste em ter filhos, Pierrette? Talvez contigo ela tivesse mais facilidade em abrir-se, talvez se sentisse mais compreendida. No entanto, também tenho medo. Medo de que essa ousadia um dia a coloque em sérios problemas. Mas entre ter dissabores pelo que fez ou existir mornamente sem realmente viver, é sempre melhor arrepender-se do feito. Antes as palavras ditas do que aquelas que ficaram por dizer.
Ela decidiu parar no meio do passeio e sentar-se na areia e durante um longo tempo ficamos a olhar para o oceano sem início ou fim. Não me atrevi a cortar o silêncio instalado entre nós. Queria dizer alguma coisa, queria mostrar-lhe que não está só, que a sua dor é a minha dor também, por pior mãe que tenha sido. Queria dizer-lhe que a amo e que por mais distante que possa ter parecido, foi só por não saber como chegar até ela, por nunca ter tido ninguém que me mostrasse como ser mãe. Mantive-me calada, contudo. Todas estas palavras travadas na garganta, quase como a fumaça de um cigarro que não deixei escapar. Não é trágico estar tão perto de alguém e sentir que não poderíamos estar mais longe?
Sem aviso, ela decidiu quebrar a mudez do ambiente. Perguntou-me se achava que era errado sentir falta do pai. Mais surpresa com esta pergunta não poderia ter ficado, mas tentei disfarçar, temerosa que ela se fechasse novamente dentro de si mesma. Buscando em mim um tato que nunca possuí enquanto mãe, disse-lhe que não. Porque apesar de tudo, por pior que fosse, por mais mal que Marcel tenha feito, a verdade é que pelo menos para ela, sempre foi um pai. E é assim que ela deve lembrá-lo, como um pai que a amava muito. Deve só guardar as memórias felizes que tem dele, até para a dor ser mais suportável. Porque não, não acho que seja errado ela sentir falta do pai. Catherine tem todo o direito de fazer o seu luto, a sua dor em nada é menos válida por ser de Marcel que estamos a falar.
A vontade de limpar as múltiplas lágrimas que macularam o rosto da minha filha foi tão forte que não tive tempo de refrear o meu impulso e quando vi já o tinha feito. Tive medo que me rejeitasse, que aquele pequeno e tão frágil elo que estávamos a construir se desfizesse ali mesmo como os castelos que são feitos todos os dias naquela areia. Todavia, ela não se afastou e fechou os olhos enquanto secava a sua face. Aproveitei para me aproximar e reafirmar que ela não tinha de se sentir culpada de nada. Nós é que tínhamos errado, tanto eu como Marcel. No meio disto, ela e Suzon são as maiores vítimas desta maldita família. Aí olhou-me com toda a sua intensidade e fez outra pergunta difícil de ser respondida: porque é que ia deixá-las para trás para partir com Jacques?
Porque queria ser livre. Porque vi nele uma oportunidade de tentar ser alguém mais feliz. Porque não aguentava mais aquela paz podre entre mim e Marcel, as constantes manipulações da minha mãe, os conflitos com Augustine sempre pelos mesmos motivos. Porque senti que ia enlouquecer se ficasse nem que fosse mais um dia naquela casa. Porque me sentia a sufocar. Porque mesmo não amando Jacques, ele era bondoso e gentil (pelo menos assim eu pensava) e estava a oferecer-me a possibilidade de uma nova vida, uma que eu esperava honestamente ser melhor do que a que levava na época. Porque estava cansada de sentir-me completamente invisível. E porquê é que ia deixá-las para trás? Como poderia exigir de Suzon que viesse comigo quando já tinha toda uma vida noutro lugar? E como poderia obrigá-la a ela a vir comigo quando sempre amou mais o pai do que a mim? Como poderia pedir-lhe para escolher quando sabia o resultado desde início? E seria justo fazê-lo?
Depois de alguns minutos de completa quietude, decidi dizer-lhe tudo isto. Que valeria mentir? Para que serviria? Até hoje de nada serviu. Ela ficou a assimilar todas as minhas palavras e mirou-me como que à procura de algum rasto de inverdade em mim. E como já não tivessem existido demasiadas surpresas na noite, a minha filha atirou-se nos meus braços e abraçou-me com tanta força que quase caí para trás. Senti as suas lágrimas quentes molharem a minha bochecha enquanto me pedia perdão. Mas de quê? Magoa-me tanto ver a minha menina sofrer assim, recriminando-se por coisas das quais não tem culpa alguma. Pediu-me perdão por ter feito aquele estúpido jogo, por me ter feito sentir que não me amava. Mais uma vez expliquei-lhe que quem tinha errado éramos nós, eu e Marcel. Pois por mais que gostasse de livrar-me da responsabilidade, bem sei que também tenho telhados de vidro. Cada um de nós errou à sua maneira, mas a maior verdade no meio disto tudo (talvez a única) é que ambos a amamos muito.
Isso pareceu reconfortá-la e enquanto a embalava nos meus braços concluí, com grande pavor, que não me conseguia lembrar da última vez que tinha abraçado assim a minha filha. Ela está a dormir agora, visto que a madrugada já tomou conta do mundo e sou a única acordada da casa. Impressionante como Suzon entendeu o que se tinha passado entre nós mesmo sem lhe termos dito uma única palavra. Simplesmente deu-nos aquele olhar quente, repleto de ternura, como quem nos diz de que tudo vai correr bem, que no fim vamos todas ficar bem. Queria tanto acreditar nisso. Será que um dia vamos ficar todos bem? E tu, Pierrette, estarás bem? Espero que sim, que não te tenhas metido em nenhuma alhada (porque é bem o teu género) e que estejas a usar o mínimo de sensatez para tomar as tuas decisões. Onde quer que estejas. Sabes uma coisa? Hoje é talvez o primeiro dia em que sinto que realmente poderá existir um futuro melhor. Não quero mais fugir. E é bom. Sentir que ainda resta em mim alguma coragem. Quem sabe um dia seja uma mulher minimamente merecedora do teu amor ou pelo menos da tua admiração. Mas isso já é querer demais e antecipar muito o tempo. E se há coisa que tenho aprendido nestes últimos tempos é de que nada adianta tentar prever o que a vida nos reserva. Ela acaba sempre por surpreender. Até lá, penso em ti. Que mais posso eu fazer?
À bientôt, Pierrette.
Gaby
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Espero que tenham gostado e até uma próxima chéries <3
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L'automne 37
Fanfiction"Foi em 37. No Outono de 37. A vida era tão simples. E, de repente, tudo mudou. Não fazia ideia do me esperava. Não poderia sequer imaginar o quanto este encontro, este estranho acaso mudaria a minha vida. Era tão jovem para entender, Pierrette. Mas...