"Não é até estarmos perdidos que começamos a nos achar", Thoreau.
Mizpah [substantivo; hebraico bíblico]: refere-se ao forte laço emocional entre pessoas separadas por distância ou morte.
Cometi meu primeiro crime hoje. Cometi-o e, não sem alguma hesitação, decidi ir ao cinema. Me limpar. Me esquecer. Esquecê-lo. Meu crime: omissão. Mas se a vítima me foi omissa a vida inteira, ele ainda é imputável? E se minha maior punição foi viver perto dela, ainda devo ser punida? Não consegui disfarçar meu sorriso de canto de boca ao pensar nisso. Chegava a ser curioso chamá-la de vítima: a mim foi sempre algoz. Eu sabia que tudo que dissesse podia e iria ser usado contra mim algum dia, julgada que seria quando descobrissem a verdade - e, por isso, sussurrava baixinho para mim mesma. A morte é um tipo estranho de liberdade. Liberdade não só para quem morre, mas, principalmente, para quem fica. Eu me sentia mais livre agora que ela tinha ido. Era como se tivessem tirado um peso de cima de mim e, de repente, surrealmente, tudo fosse ficar muito melhor. Apesar disso, me sentia mal: minha consciência não aceitava que eu estivesse aliviada, confortada, quase feliz - se eu acreditasse em felicidade. Como poderia? Era sujo, baixo, abominável. Culpada que era, corri para o cinema e, em vão, tentei me esquecer do pouco que sentia. Em vão, me pus a esquecê-la, ingenuamente acreditando que o mundo me permitiria tal paz. Ingenuamente acreditando que eu mesma não destruiria qualquer paz. Estava quase calma para quem havia acabado de participar de um homicídio.
Enquanto andava pela rua barulhenta, me esgueirando por entre carros e pedestres ignorantes, pensei na Crystal. Ela, sim, ficaria triste - e ainda tentaria engolir o choro para me consolar. Iria querer me dar o mundo em beijos e abraços e, quando visse que eu não esboçava nenhum sofrimento, acharia que eu estava em estado de choque. Eu podia confessar tudo, dizer que sentiria absurdamente mais se fosse ela que tivesse morrido, que Cristina não era ninguém para mim e que, no fundo, sempre desejei isso. Tinha certeza de que era recíproco. Mas Crystal sempre me achou melhor do que eu realmente era e eu não queria destruir sua fantasia. Por isso, teria sangue frio e a deixaria pensar que eu não sabia de nada, não havia desejado nada e, muito menos, provocado. Se não me apressasse, perderia o começo do filme.
Não que isso fizesse muita diferença, já havia visto "A Rosa Púrpura do Cairo" milhões de vezes. Era o tipo de filme que eu assistia para aumentar ainda mais a minha raiva do mundo. Às vezes, ela era a única coisa que me restava. Antes da Crystal, da Mel e do Felipe, era ela que me colocava para dormir e me dava motivo para acordar. Odiar a Cristina e saber que ela me odiava de volta me fazia querer continuar ali, atormentando-a, encarando-a, existindo. E odiar a Cecilia, protagonista da história, era inevitável. Se, como ela, eu tivesse a chance de viver dentro de um lindo filme de cinema, jamais escolheria a vida real. A indiferença, o abandono, o purgatório. Mas ela, sim. Bem que o marido que a espancava dizia que ela era burra.
Cheguei suada ao cinema, incomodada com a maldita umidade do dia, Sol na cara de todos. Comprei rápido a pipoca, a água e o chocolate, entreguei o ingresso e fui para a sala, infelizmente, lotada. Era triste saber que muitos estavam ali não porque eram amantes do filme, como eu, e sim porque nunca o viram e queriam adicioná-lo à listinha de filmes Cult já assistidos. Quando entrei na sala, o trailer já havia começado e os presentes já mastigavam fervorosos a pipoca e se esfregavam nos assentos. Por um breve instante, hesitei. Quis sair correndo dali e voltar para o meio da rua, ver de verdade o que tinha acontecido, saber como ela estava. Ou sair correndo e me esconder em casa, trancar a porta do quarto, me cobrir inteira com o edredom da Mel e dormir até esquecer, pronta para acordar no dia seguinte fingindo que nada tinha acontecido e que eu era a mesma de antes, a mesma de sempre. No entanto, podia acabar sonhando com ela - e, de alguma maneira, isso me deu mais medo do que entrar ali e simplesmente assistir a uma hora e meia de filme, ainda que espremida entre desconhecidos. Sonhar com ela seria como deixá-la entrar no meu coração, logo agora que não existia mais. Seria, depois de tanta luta para matá-la dentro e fora de mim, perder. Mas ali, perdida entre as falas que eu sabia de cor e a história invejável da protagonista, ela mal me assombraria. Ali ela era inofensiva, o mundo todo era inofensivo. Descolei o corpo da parede, respirei fundo e comecei a subir os degraus, encarando o chão, num caminho que parecia interminável.
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Mizpah
General FictionE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...