A verdade era que estava com medo de acordar. Enquanto ainda estava ali, encolhida no chão, na parca penumbra e na solidão, me sentia protegida. Do mundo e de mim. Sabia que, a partir do momento em que me levantasse e encarasse - ou tentasse encarar - a vida, todas as angústias que o sono continha iriam ressurgir e aquela paz tão estranha que me cercava desapareceria. A paz mórbida de um pesadelo, a paz melancólica de sonhar com Cristina. Nem eu entendia por que, de repente, me sentia tão bem e, mais do que isso, tão próxima dela, quando, claramente, estávamos mais distantes do que nunca. Talvez porque nos sonhos, pesadelos ou alucinações, eu a tivesse para mim; eu a tivesse, finalmente, prestando alguma atenção em mim - e não simplesmente fingindo que eu não existia, como nós nos acostumamos a fazer uma com a outra nos últimos tempos. Antes de Ricardo - me contorci de ojeriza ao pensar no seu nome -, já não estávamos nos falando. Na realidade, foi só por causa do incidente com ele que voltamos a nos falar e olhar cara a cara, mesmo que tudo não tenha passado de uma troca ridícula de ofensas e acusações infames. Todo aquele tempo fugindo uma da outra e as primeiras palavras que trocamos não foram palavras, mas facas. Já não havia nem eu nem ela, só a avidez recíproca de nos machucar pulsando forte em uma bolha opressora de rancor acumulado. O rancor de uma vida inteira. A pior parte ainda é saber que seria assim de qualquer maneira, com ou sem Ricardo. Justamente por isso, talvez a pior parte mesmo seja admitir que, por mais doentio que pareça e seja, eu deveria agradecê-lo. Pelo menos, ele deu a ilusão de que tínhamos um motivo para nos atacar que não fôssemos nós mesmas e a nossa convivência; algo que não fosse o tóxico prazer de jogar esse jogo de destruição mútua. Fechei os olhos com alguma esperança, mas já era tarde demais. Estava acordada. E tinha mais um dia inteirinho de complexos e traumas ocultos - ou, infelizmente, não tão ocultos assim - com que lidar. Mais um dia sem Cristina e, no entanto, pleno de lembranças, pesares e desconfianças dela.
Apesar da tranquilidade anormal que o pesadelo havia me concedido - cujo efeito anestésico se esvaía cada vez mais depressa - martelavam insistentemente na minha cabeça as palavras de Crystal: "De tudo. Para conseguir o que queria, ela era capaz de tudo". Eu podia facilmente imaginá-la do outro lado da linha, confessando um aviso sussurrado de que eu não deveria confiar em Cristina. Não disse isso com essas palavras, porém insistir - quase implorar - para que eu não julgasse aquela família tão rápido me parecia simplesmente uma forma educada e sutil de ficar do seu lado. A questão é: por que ela ficaria do seu lado? Por mais que tivesse uma desculpa - e uma desculpa crível -, não conseguia me livrar da estranha sensação de que ela estava tomando partido. E me dava calafrios pensar no que Cristina poderia ter feito de tão grave - além dos óbvios anos de insultos e danos a mim e ao mundo - que a própria Crystal se voltaria contra ela. Quer dizer, o que mais ela poderia ter feito? 'Qualquer coisa', murmurou uma voz dentro de mim, e me senti ainda mais acuada e envergonhada ao lembrar que não sabia quem Cristina era, afinal. Acho que não fazia ideia do quanto não a conhecia até não ter mais chances de fazê-lo. Senti meu coração apertar enquanto a inexorabilidade da morte me descia pela garganta. Ainda que descobrisse alguma coisa sobre Cristina que a tornasse menos insondável, seria através dos outros. Seriam olhos, lentes e interpretações de outros sobre ela; fragmentos desconexos que, com sorte, me dariam uma imagem coerente. Eu já tinha a minha própria imagem... O que queria era a alma. O que queria era a verdadeira Cristina, a que existia para além da raiva, da solidão e do desespero que a engoliam. Sabia que, lá dentro, lá no fundo, escondida e pressionada por essas camadas infinitas de dor, existia algo vibrando e lutando para emergir. Tinha que existir. Eu me recusava a aceitar que ela fosse só aquilo que me mostrava. Ao mesmo tempo, torcia secretamente para isso, na esperança de que fosse menos difícil sentir sua falta se ela realmente fosse só gritos e drinques e homens; se fosse, enfim, só o que eu conhecia. Valeria a pena, afinal, descobrir que ela era mais? Valeria a pena descobrir que ela tinha mais a oferecer e, por qualquer razão, não o fez? Talvez desvendar esse algo, em vez de nos aproximar, só nos afastasse ainda mais, se é que isso é possível, e me corroesse ainda mais. Quer dizer, valeria a pena encontrar motivos dignos para justificar a falta imensa que ela já fazia?
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Mizpah
General FictionE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...