Doce surpresa

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- Mamãe, mamãe, você volta logo?

- Já falei, Mia. Daqui a pouco, eu volto para te buscar. É só você ficar bem quietinha e não falar com estranhos que vai ficar tudo bem. Olha em volta: é um parque bonito, não é?

Fiz que sim com a cabeça. As grandes árvores filtravam a luz do Sol, permitindo que somente alguns raios atravessassem suas folhas e iluminassem o pequeno paraíso que ali se formava, pleno de borboletas voando baixo e risos de outras crianças alegres. Tudo ali me convidava a brincar e aceitar que estava tudo bem. Mesmo assim, eu não queria deixá-la ir, porque sentia que havia algo fora do lugar. Desde já, desconfiava da perfeição.

- Mas por que você não fica e brinca comigo?

- Porque eu tenho coisas mais importantes para fazer. Tem uma vida nova me esperando e eu não posso mais perder tempo com você, Mia. Você me atrasa, entende? Você atrapalha a mamãe.

- Mas eu não quero te atrapalhar, eu juro!

- Então faz o que eu to falando. Fica aqui quietinha vendo o parque e, quando alguém aparecer, entrega essa carta. Ta tudo explicado aí. Se sentir fome, tem biscoito na sua mochila. Água também. E um casaco. Mas presta atenção: se ninguém aparecer até de noite, você pega o dinheiro que eu coloquei na sua carteira e vai até esse endereço aqui - ela pegou um pedaço de papel e mostrou o nome de uma rua. Toca a campainha e fala que você é neta, NE-TA, dos Albuquerque de Moraes, eles vão ter que te aceitar. Você é responsabilidade deles agora. Entendeu, Mia?

- Uhum.

- A sua identidade também tá aí dentro. Mostra ela quando as pessoas perguntarem quem é você. - De repente, ela me encarou, séria e solene. - Eu vou embora agora.

- Mas volta logo, né?

- Assim que der. - Ela me fitou por mais alguns segundos e respirou fundo, como se quisesse tomar coragem para fazer alguma coisa. - Boa sorte.

Não entendia por que precisaria de sorte nem por que tinha que ficar sozinha naquele parque enquanto ela fazia as coisas importantes que tinha para fazer. Ela podia simplesmente me levar junto, aí eu aprenderia a fazer coisas importantes também e não atrasaria mais a sua vida. De qualquer maneira, estava muito feliz porque ia passar tempo com o vovô, a mamãe nunca deixava. E eu sentia falta dele.

- Brigada, mãe. Te amo!

- Eu sei, Mia.

Ela se levantou calmamente da grama, ajeitou a roupa e saiu rápido do parque. Nem me viu dando tchau. Como poderia? Em nenhum momento olhou para trás.


Um som alto de buzina me despertou, de repente. Abri meus olhos confusos e, em um desespero vão, procurei sinais de Cristina ou do parque.Quando reconheci as ruas sujas e engarrafadas da São Paulo que eu conhecia, respirei aliviada e quis agradecer de joelhos ao mundo inteiro por estar exatamente onde estava: no banco do carona do carro de Felipe, voltando do enterro de Cristina. Só mais uma alma anônima perdida no caos da própria vida. Isso eu podia aguentar: já tinha aprendido a lidar - ou simplesmente negligenciar - a realidade à minha volta; já sabia, ou achava que sabia, o que esperar dela. Bastava fechar os olhos e seguir em frente, ignorando qualquer traço de sofrimento reprimido que cruzasse o meu caminho. Ignorar é uma forma de não sucumbir. Ao caos e às dores do meu presente, eu já estava acostumada. Lembrava-as e as esquecia todos os dias antes de dormir, porque viver um novo dia exigia que eu passasse por cima do anterior. Exigia que eu suprimisse todos os pensamentos ruins e fantasias suicidas que tivessem me acometido no anterior simplesmente para não ceder a elas, em uma espécie covarde de autodefesa. O que me mantinha viva era o esquecimento progressivo de tudo o que já tinha vivido. Esforço inútil de Sísifo*: a cada 'novo' dia, via as mesmas sombras pairarem sobre mim, anunciando as tempestades de sempre, e me limitava a omiti-las, tornando-me deliberadamente estranha a mim mesma. Condenada a tentar eternamente esconder o sofrimento só para vê-lo ressurgir das cinzas que improvisei, dia após dia. Ignorar é também uma forma de sucumbir. Mas quem sabe um dia eu me torne tão estranha a mim que já nem me lembre da minha própria identidade e, incapaz de reconhecer-me, possa criar outra. Não ser mais Mia, o que quer que ela seja. Começar do zero. Nada me acalentaria mais. E nada atestaria mais a minha derrota.

MizpahOnde histórias criam vida. Descubra agora