No dia seguinte, acordei com dois olhos atentos me encarando, mas, antes que pudesse reagir, eles sumiram porta afora. A claridade insuportável da manhã invadiu o quarto e, naquele exato momento, eu soube que seria um dia ruim. Quis rastejar até a porta, trancá-la e voltar a dormir, dormir para sempre, mas um misto de preguiça e tristeza não me deixaram. Tristeza não por Cristina, que, afinal, estava morta, mas por mim, que, estando viva, precisava lamentar a sua morte. Ou melhor, fingir lamentar. E fingir ainda aceitar as condolências de pessoas que jamais nos conheceram de verdade e que pouco ou nada fizeram por nós. Uma vida inteira de negligência e indiferença não significa nada: na hora do enterro, todos "sentem muito".
Quisera eu que, em vez me dar os pêsames, as pessoas confessassem que o que verdadeiramente as dominava era um pleno e legítimo sentimento de 'Bem feito' e 'Enfim, a vaca morreu'. Não tenho dúvidas de que, exceto por Crystal, Mel, Felipe e, por culpa, eu, era assim que todo o resto se sentia. Cristina não era benquista por ninguém e, ainda assim, todos haviam se comprometido a ir ao cemitério se despedir e só eu parecia saber a real razão: não amor, mas vingança; não luto, triunfo. Eles, bem ou mal, estavam vivos e ela, que se gabava de ser melhor do que todo mundo, já não era nada, não significava nada. A beleza de que tanto se orgulhava a partir de agora ia ser apreciada só por vermes. E eles, os 'idiotas, medíocres e reles seres inferiores que não prestavam para nada', assistiriam de camarote ao espetáculo da sua queda, rindo-se e regozijando. 'Enfim, a vaca morreu'. Ter a sórdida consciência de que era isso que ia acontecer esmagava o que quer eu tivesse no lugar do coração.
Tomada de raiva, revirei-me na cama e desejei mesmo que ela estivesse viva, simplesmente para acabar com a festa de todos que a odiavam - inclusive eu. Desejei, por um brevíssimo momento, que ela estivesse, mais uma vez, jogando as roupas dos amantes pela janela com uma garrafa de tequila na mão e nojo de si e deles, porque era nesses momentos que eu achava que tudo ia mudar. Quando era pequena, até a ajudava, e achava mesmo que estávamos nos livrando de todo o lixo da nossa vida. Até que eu percebi que o lixo estava dentro e que, em vez de roupas, nós é que devíamos nos jogar da janela. Aí, sim, a casa estaria limpa. Cristina já havia ido embora, então, só faltava eu...
Crystal me despertou da fantasia de suicídio com o típico sorriso cálido de quem não faz ideia do que se passa à sua volta e eu podia vê-la se esforçando para fingir que não tinha chorado a noite inteira. Como se eu não tivesse ouvido.
- Bom dia, flor do dia! Dormiu bem? - Seu excesso de alegria forçada me pegou tão de surpresa que eu imaginei que pudesse ter acontecido algo de maravilhoso da noite para o dia.
- Não, né... Por que você está tão alegre?
Crystal assumiu que minha resposta tivesse a ver com a morte de Cristina - e não com o fato de que eu normalmente durmo mal - e, imediatamente, começou a fungar. Sentia a vergonha, o remorso e a culpa pesarem nela.
- Ai, meu amor... Desculpa! É claro que você não dormiu bem, como poderia? - respirou fundo - E me desculpa se eu pareci alegre, Mia, eu não to, não tô mesmo...
- Crystal, eu...
Seu choro agora incontido me impediu de continuar e, desesperada, ela me agarrou em um abraço.
- Eu só queria te dar um bom dia alegre, Mia, porque eu sei da sua dor, eu compartilho a sua dor, sabe? Ela era minha melhor amiga - começou a soluçar - E sabe o pior, Mia, sabe o pior? Eu nem tenho uma roupa decente para ir ao enterro!!!
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Mizpah
Fiksi UmumE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...