Reli mais uma vez o bilhete, tentando desesperadamente controlar - e esconder - o tremor de minhas mãos. Só podia ser dele. Dele. Solucei. O que aquilo significava? Que ele sabia que eu estava ali, sabia que Cristina estava morta e eu seria escorraçada e humilhada pela sua família e não fez nada além de escrever um maldito bilhete pedindo perdão? Ri de nervoso. Um bilhete com um pedido de desculpas era mais do que tinha feito a vida inteira. Um bilhete com um pedido de desculpas era, na realidade, mais do eu poderia esperar dele. Um bilhete comprovando que estava vivo, sabia quem eu era, sabia o que estava acontecendo comigo e, segundo ele, se importava? "Talvez eu devesse estar agradecida!", remoei com escárnio. Talvez devesse estar pulando de alegria com o fato de que, depois de 17 anos de omissão, ele tenha escrito um BILHETE para dizer que "nunca teve a intenção de me machucar" - isso deveria consertar as coisas, não? Talvez, na verdade, eu devesse estar me sentindo aliviada porque ele me desejou boas-vindas à família; ele, que me renegou e nunca sequer olhou na minha cara; ele, que desprezou Cristina no exato momento em que ela lhe disse que estava grávida; ele, que chegou a tentar...
Meu celular vibrou e me impediu, pelo menos, momentaneamente, de me lembrar do pior. Não deixa de ser engraçado como o mais simples esforço ou súplica para não pensar em alguma coisa já nos leva a pensar nela. Eu podia ouvir as duras palavras de Cristina ecoarem no fundo da minha mente, porém, ainda assim, queria me convencer de que o telefone iria me impedir de me lembrar e ter um colapso - mais um. A ligação era de Crystal. Dei um longo e murcho suspiro e, resignada, atendi.
- Alô? - perguntei baixinho, na esperança de que Crystal nem me ouvisse. Se me ouvisse, saberia que tinha chorado. Não veria meus olhos vermelhos e inchados, nem as lágrimas secas na minha bochecha quente, mas, para ela, bastava a voz rouca e trêmula.
- Mia? Mia, você ta aí? Ta me ouvindo? - gritou ela no telefone.
- Tô - respondi o mais rápido que pude, como se falar rápido fosse, de alguma forma, fazer tudo desaparecer. Ela ficou em silêncio por um tempo e respirou fundo antes de continuar, insegura.
- Você andou chorando? - perguntou, já ciente da resposta. A preocupação do seu tom de voz vinha acompanhada de um conformismo tão melancólico quanto cansado: o meu estado não era surpresa alguma e, talvez, enquanto se delongava no telefone e media suas palavras, Crystal estivesse simplesmente pensando de que forma poderia escapar ilesa do constrangimento de lidar comigo. Miazinha sempre tinha um problema. Miazinha era um estorvo que não lhe pertencia. Não mais, felizmente. Eu deveria poupá-la do desgosto.
- Não! - gritei desolada, enquanto meus lábios tremiam e sentia meus olhos se encherem d'água. Sempre que tentava mascarar meu choro, ele ficava mais forte, porque denunciava para mim mesma a minha ânsia obsessiva de estar bem - ou, pelo menos, parecer. Tudo em mim, na realidade, evidenciava a perturbação e o desespero para conter o que estava dentro. Aquelas lágrimas insípidas, o tremor ridículo das mãos ao segurar o bilhete, o despedaçar de rosas no enterro de Cristina, a dor em destruir o bolo... Apenas sintomas da cisão abismal que me dominava, a pungente relutância em sentir, em me permitir sentir algo além de ódio ou raiva daqueles que, a contragosto, eu já amava. Quem disse que o amor tem pudores? Senti as malditas lágrimas descerem.
- Mia, o que aconteceu? - insistiu ela e, irritada, decidi cuspir-lhe a verdade. Ela que havia me ligado, afinal.
- Eles fizeram uma festa! Fizeram uma festa para celebrar a morte dela! - gritei com a voz já plenamente embargada e, no mesmo instante, me arrependi. De todos os ultrajes e humilhações que poderia ter berrado para Crystal, escolhi logo o que fazia Cristina parecer uma vítima injustiçada, uma defunta desrespeitada. Em vez de falar de mim, de mim - de como eu agi e fui tratada -, meu primeiro impulso foi falar dela, e isso só aumentava o meu medo de nunca me livrar da cretina, de nunca conseguir me ver e me entender sem antes ter que pensar nela e tentar, em vão, compreender quem era. Quando, finalmente, o meu reflexo iria me refletir?
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Mizpah
General FictionE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...