Bem-vinda à família - parte 1

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A primeira coisa que notei de diferente foi o ar. O Rio de Janeiro parecia ter o ar impregnado pela insuportável promessa de uma felicidade estupidamente ensolarada. Para qualquer lugar que olhasse, sentia pesarem em mim resquícios desse júbilo incontido que as ruas da cidade exibiam. Parecia não haver lugar para a tristeza naquele mundo sorridente protegido pela detestável limpidez de um céu azul infinito e pela magnitude dos grandes morros que o separavam do resto do universo. A impressão era de que eu entrava em um paraíso.

Assim que esse pensamento veio à tona, quis conservá-lo. Por um momento, quis me deixar acreditar que, de um modo tortuoso, talvez eu estivesse no caminho certo - ou, que seja, num caminho 'menos errado' -, porém, logo em seguida, me repreendi com deboche. Eu era a minha própria piada de mau gosto. Se, por um lado, tudo o que mais queria era ser capaz de acreditar, realmente acreditar, que as coisas pudessem dar certo; por outro, me censurava violentamente ao menor sinal de que isso estivesse acontecendo. Desistia das minhas esperanças antes mesmo de tê-las; paria-as natimortas. Dominada por uma mistura de culpa, medo, ressentimento e pessimismo - esse pessimismo rançoso que me suplanta! -, renunciava a elas. E doía perceber a minha necessidade de destruir qualquer coisa que me fizesse bem. Sabia: eu mesma era o abismo de onde me jogava. Eu era a assassina perversa, a vítima desamparada e a culpada cúmplice que assiste inerte ao espetáculo, acuada, todas presas nesse mundo onde Mia era déspota e escrava. Era tudo e não era nada, onipresente e impotente no meu próprio mundo. Só uma garota que sonhava em ter paz, mas não conseguia se deixar em paz; alguém que perseguia a bonança, mas continuava colhendo tempestades que nunca se resolviam - talvez nunca se resolvessem - e eu sequer tinha plantado. E como parar isso? Como me parar, senão mesmo pela morte? De que outra forma posso me proteger das coisas que não controlo? De que outra forma posso me proteger do que independe e, principalmente, do que depende de mim? Torci a boca em desgosto. Ninguém pode nos arruinar tão bem quanto nós mesmos. Justamente por isso, talvez eu funcionasse melhor se calasse minha mente e me ocultasse de mim. Quer dizer, talvez o truque para viver ligeiramente melhor fosse fingir nem estar notando a vida que pulsava ao redor.

Respirei fundo. O paraíso que eu via era reservado apenas àqueles que podiam pagar por tamanha perfeição. Aos outros, caberia a humilhante missão de esconder-se em becos e ruelas sujas durante à noite e, de dia, esgueirar-se pela beleza que não lhes pertencia, tentando desprezá-la e, simultaneamente, roubá-la para si. Embora, à primeira vista, pudesse parecer, o céu não era azul para todos - e aqueles que ousassem destoar da rica paisagem eram simplesmente invisibilizados e jogados para fora do quadro, como se sequer tivessem existido um dia. A beleza carioca era selvagem, seletiva e, acima de tudo, hipócrita: quantos e quantos sofrimentos aquela alegria viscosa que escapava da paisagem não devia dissimular? E quantas pessoas os pérfidos raios de Sol já não teriam enganado com o terrível clichê "a vida é bela"? A vida só é bela para quem consegue vê-la bela e quem consegue isso são os que só olham para a parte ensolarada do quadro. A cegueira - escolhida ou não - embeleza e idealiza tudo. A lucidez apodrece.

Ainda assim, durante todo o tempo da viagem, por teimosia ou pelo simples prazer de desafiar minha própria melancolia, me deixei perder nas imagens que via pela janela do carro, no movimento de toda aquela vida que transbordava das ruas e ameaçava respingar em mim - Ai de Mia se não fosse blindada! De repente, parecia que eu estava entrando em um mundo novo, um mundo em que as pessoas não morriam soterradas pelo peso das próprias culpas e mágoas, um mundo em que realmente fosse possível respirar sem sentir a força de rancores escondidos nos arrastarem para baixo. Mesmo plena na minha prostração - desafiar a melancolia não significa vencê-la -, descobri uma estranha sensação de bem-estar querendo me tomar, sem como nem por quê. Acostumada como estava a ser triste, desconfiei, claro, e quis rejeitá-la.

MizpahOnde histórias criam vida. Descubra agora