Acordei no quarto de Crystal. Infelizmente, acordei. De volta para a mesma vida. E pensar que, por um momento, eu realmente achei que estava me despedindo de tudo isso... Me deu até raiva essa ingenuidade. Além de incompetente, eu tinha me tornado idiota: como pude acreditar, mesmo que por um instante, que sonhos se realizavam? Como pude achar que seria tão fácil me libertar? Eu estava condenada a seguir em frente, a continuar, como se pudesse, como se quisesse, como se tivesse forças. E ainda havia sido descoberta: Crystal tinha me visto lá, desesperada, desolada, empenhada em acabar comigo mesma - um empenho que só não foi totalmente em vão porque mostrou que eu era verdadeiramente capaz de atentar contra mim. Até então, eu só cobiçava fazê-lo, planejando e degustando na minha mente mil e uma maneiras de dar cabo de mim mesma, porém nunca tinha ousado pôr qualquer uma delas em prática - sempre deixava algo me deter. Alguma apresentação de balé da Mel, algum filme bom no cinema... Às vezes, até o som que as folhas das árvores fazem ao serem tocadas pelo vento - a sutileza do seu movimento, a calma com que o vento as balançava e mudava de rumo. Eram esses pequenos prazeres inoportunos que postergavam a minha morte. Sempre que eu pensava em ir até o fim - em me tornar meu fim -, surgia na minha vida algo que estranhamente me fazia bem, como que para me impedir de me jogar do abismo, para me fazer hesitar e continuar prisioneira. Era como se o mundo, percebendo que eu ia me salvar, quisesse me tentar com migalhas de alegria e promessas de absurda felicidade. Portanto, quando menos esperava, eles atravessavam o meu caminho e me desafiavam a ficar mais um pouco, a resistir.
E, para minha desgraça, eu caía na armadilha e me desfazia, pelo menos por um tempo, da minha determinação recém-conquistada em morrer. "Talvez valha a pena, afinal", a ilusão sussurrava em meu ouvido. O destino nunca deu trégua: tão logo eu pensava em me livrar dos meus demônios, esses mesmos anjos desapareciam. E não sobrava nada além de falsas expectativas e novas decepções, prontas para se aglomerarem debaixo do tapete. Felicidade é propaganda enganosa. Essas poucas coisas que me acalmavam eram apenas a vitrine de uma grande loja na qual eu nunca poderia entrar e, mesmo sabendo disso, me deixava enganar. Se sobrevivesse, se me submetesse, seria recompensada: a vida tinha muito mais a oferecer do que mães cretinas e padrastos abusivos. Meu erro foi ter acreditado.
Meu erro foi ter perdido tanto tempo inventando pretextos bobos para evitar o inevitável, a minha própria queda. Quanto mais eu iria ter de aguentar antes de ser agraciada com a liberdade? Quanto mais eu podia aguentar? O futuro é tão insondável que chega a ser ultrajante. Atordoava-me não ter o mísero direito de saber com que tipos de sofrimento ainda teria que lidar. Segurei minhas lágrimas - não ia chorar duas vezes num intervalo tão curto. Eu era a culpada do que estava e iria seguir acontecendo. Se tinha a capacidade de me exterminar, como o episódio do corredor havia comprovado, tudo depior que me acontecesse dali em diante seria consequência da minha covardia - talvez, bem lá no fundo, não gostasse tanto da ideia de não existir. Portanto, cada segundo que eu escolhia viver - fosse por raiva, preguiça ou vontade - reafirmava a minha responsabilidade sobre o meu próprio pesar, já que eu tinha o poder de interrompê-lo a qualquer momento. Com encantamento e terror, entendi que não precisava me limitar a fantasiar meu suicídio: eu poderia executá-lo. Meus olhos brilharam e, mesmo segurando o choro, quis sorrir: uma vez na vida, a decisão era minha. Mia havia sido, enfim, empoderada.
Uma sensação tétrica de paz me dominou, porém, antes que pudesse desfrutá-la, percebi que Crystal estava me encarando do outro lado do quarto. Não fazia ideia de há quanto tempo ela estava ali, séria, sombria, muda, olhar fixo em mim. Ameacei levantar da cama e ir até lá, mas minha cabeça começou a doer horrores assim que a descolei do travesseiro. Passando levemente a mão nela, descobri um galo enorme.
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Mizpah
General FictionE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...