Enterro - parte 2

64 9 4
                                    

Quando finalmente cheguei ao cemitério, não foi preguiça, nem raiva, nem alívio que senti. Foi medo. Medo de entrar ali e descobrir que era verdade: ela tinha mesmo ido e eu já não poderia me alimentar de nenhuma esperança tola de que um dia seríamos uma família de verdade. A morte anula não só a pessoa que conhecemos, mas, principalmente, todos os sonhos e vontades que a envolvem: o que sobra é só o rastro vazio de um futuro impossível e a saudade de tudo o que poderia ser e nunca será. De repente, não há mais nada - e nada é tudo o que você tem. A minha dor não era tê-la perdido, posto que nunca realmente a tive, e sim ter que abdicar da ilusão estúpida de que poderíamos ser felizes juntas. Ela tinha ido embora de vez e me relegado a viver com a inexpugnável certeza de que não haveria segunda chance para nós. Não que eu a quisesse, muito pelo contrário. Só gostava do conforto da ilusão. E, sem ela, já não sabia o que esperar de toda a desgraça que eu pressentia vir pela frente. Dentro de mim, ecoava uma sensação perturbadoramente nítida de que, por mais incrível que parecesse, as coisas seriam piores sem Cristina. E era essa intuição que me assustava mais do que tudo. Entrar ali, pisar naquela terra, respirar aquele ar era atestar que não tinha arrependimento, nem culpa, nem choro, nem ódio que a trouxessem de volta. A morte não tem coração, embora ela não se canse de levar os nossos.


Espantada como fiquei com meu próprio excesso de sentimentalismo, precisei me reassegurar de que, na verdade, não sentia nada por ela. Sentia por mim, abandonada e vitimizada como estava, embora nem de longe fosse uma vítima. Lamentava pela pena que ingenuamente poderiam sentir de mim e pelo teatro que eu seria forçada a engendrar pelo resto da vida. Da noite para o dia, eu tinha sido colocada nessa posição ridícula de vulnerabilidade que não me pertencia. Cristina tinha morrido e eu tinha me tornado a vítima, a órfã que precisava desesperadamente de "amor", o quer que isso significasse. E, no entanto, eu não passava de uma fraude ambulante, ora a personagem da filha em luto, ora a personagem da filha frígida que não se importava com nada, embora essa última só eu mesma visse, de vez em quando. A triste verdade era que talvez eu não fosse nenhuma das duas, mas alguém que eu mesma desconhecia. E então como poderia me proteger do que sentia? Como poderia me proteger do que não sabia que sentia? Talvez a posição ridícula de vulnerabilidade me pertencesse, afinal.


Mais do que por mim, sentia pelos outros, todos os outros que não conhecia, mas que amavam seus parentes e amigos e os tinham perdido, sabe-se lá como. Sentia por todas as pessoas do mundo que tinham amado e sido amadas por alguém que a vida levou embora. Vida ou morte, tanto faz, as duas são a mesma coisa. Estar ali significava desrespeitar a verdade da dor delas com o fingimento da minha, que não passava, quando muito, de culpa de tanto odiar Cristina, um ódio que só aumentou depois que ela morreu. Porque ela sabia que as pessoas iriam esperar que eu sofresse e eu teria que me forçar a ser algo que eu não sou, a sentir algo que eu não sinto. Eu teria que fingir sentir um "amor" que não existe. Ela sabia que as pessoas iam sentir pena de mim e me falar bem dela, ainda que fosse tudo mentira, e que, mesmo tendo feito tudo o que fez, todos esses anos, eu ia acabar me sentindo culpada e tentada a sentir sua falta. A morte dela foi só um golpe para me controlar. Por isto ela se jogou na frente do carro: não para me salvar, mas para me prejudicar, para me atormentar, para me trucidar de remorso. No entanto, eu não ia ceder. Não derramaria uma lágrima sequer por ela.


Fechei os olhos com força para dispersar qualquer lágrima que se atrevesse a cair - constrangida diante da realidade da finitude de tudo -, respirei fundo e longamente e saí do carro. Felipe já estava me esperando do lado de fora há muito tempo. Assim que saí, ele veio na minha direção e tenho certeza de que ia me abraçar e começar uma nova ladainha sobre como ia 'ficar tudo bem', mas passei direto por ele. Era óbvio que não ia ficar tudo bem e ele tinha que ser muito idiota para ser meu amigo há tanto tempo e ainda achar que um clichê tão ridículo como esse me serviria de consolo. Aliás, quem era ele para achar que eu precisava ser consolada? Ele não estava cansado de saber que eu não ligava para Cristina? Ou será que pensava que da noite para o dia, só porque ela tinha morrido, eu iria, de repente, começar a amá-la? Como se ela tivesse feito alguma droga de diferença na minha vida.

MizpahOnde histórias criam vida. Descubra agora