Parque

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Durante algum tempo, me peguei pensando que seria uma coincidência absurda demais Cristina e Amanda - a psicóloga designada para, basicamente, me tratar dos traumas que a cretina tinha desenvolvido - usarem o mesmo perfume, tão absurda que não poderia ser simplesmente uma coincidência - aliás, o que são coincidências senão armadilhas do destino? A todo momento, o mundo parecia se articular de uma forma bizarra e cruel para me fazer pensar nela, colocando-me cara a cara, aqui e ali, com pequenas evidências de que um dia ela havia existido, como se já não estivesse cansada de saber. Era como se a vida, temendo que eu a esquecesse, fizesse questão de me expor a qualquer coisa que a reverberasse. Uma foto, um choro de alguém que lhe conhecesse, uma ofensa, um perfume ou o simples e irredutível ódio que ela nutria pelos Albuquerque de Moraes. A cada passo que dava, a cada porção de ar fresco que me atrevia a respirar enquanto ela jazia abandonada a sete palmos, eu era violentada pela lembrança de sua ausência - fosse em morte, fosse em vida. E, nossa, como detestava essa sensação de estar lhe devendo alguma coisa! Logo ela, a louca da qual havia lutado tão inutilmente para me afastar. Logo ela, a louca de quem havia lutado tão, tão, tão inutilmente para me aproximar. A verdade é que me pareceu tão debochada e irônica a ideia de elas usarem o mesmo perfume que só consegui pensar que havia sido de propósito. De alguma forma inconcebível, Amanda teria descoberto a fragrância preferida de Cristina e optado por usá-la para me receber, a fim de testar a minha reação. Há psicólogos - ridículos - que fazem isso, não? Talvez ela fosse uma dessas. Ou talvez eu estivesse tão obcecada pela cretina que visse sinais dela em qualquer lugar que fosse, assombrada, e o perfume nem fosse o mesmo. Talvez estivesse enlouquecendo devagar, sufocada pela culpa de ser a filha viva. Respirei fundo, como se respirar fosse injetar calma e sobriedade em mim. Era plenamente possível que Amanda e Cristina só calhassem de usar o mesmo perfume. Suspirei irritada. Por mais que essa fosse a mais plausível - e preferível - das alternativas, ela me era inexplicavelmente inadmissível, ainda mais porque a mulher tinha - ou melhor, não tinha - uma filha chamada Mia. Algo dentro de mim não queria acreditar que esses pontos de ligação eram só acasos, mesmo eu reconhecendo a paranoia e até o egocentrismo dessa postura. "Egocentrismo", na realidade, era uma palavra engraçada para me definir: atormentada como era, vivia presa em mim por coerção, não gosto. Remoía eternamente as mesmas dores e verdades por coação de forças interiores que já não conseguia suprimir, não escolha. Se pudesse me distrair com qualquer futilidade do mundo ao redor, se conseguisse, ao menos, reparar nele, já me daria por satisfeita. No entanto, os fantasmas que rondavam a minha cabeça e, mais precisamente, a minha existência inteira, infiltravam com suas - minhas - angústias qualquer vislumbre da vida "lá fora". Tudo o que via, ouvia e tocava, por mais distinto que fosse, estava sempre contaminado pelo que sentia, a ponto de eu mesma já não saber se as coisas realmente eram como me pareciam ou se as imaginava inevitavelmente - como o maldito perfume. De uma maneira ou de outra, não havia escapatória e, desde que me lembrava, ressentia a tenebrosa impossibilidade de ser outra pessoa.

Foi justamente perdida nesse egocentrismo que ignorei todo o trajeto que Estela havia feito do consultório de Amanda até o parque desconhecido em que, aparentemente, havia parado o carro.

- Por que você parou? - perguntei apreensiva, afinal, da última vez em que ela havia me dado uma carona, tinha me levado, sem o meu consentimento, à terapia. Quando aquela mulher ia entender que eu não suportava surpresas?

- Ué, eu acabei de falar! A gente veio encontrar o Antônio! - Respondeu ela, com aquela típica alegria intragável, tão intragável que me fez desejar voltar no tempo só para revê-la plena de angústia, implorando para que aceitasse entrar no consultório de Amanda. Contudo, tão logo refleti sobre ele, percebi como era mesquinho e, mais do que isso, tolo. Se pudesse voltar no tempo, deveria voltar não para horas atrás, mas para dias atrás, para o dia do acidente. Ou talvez o real acidente tenha sido o meu próprio nascimento... Poderia voltar para ele, quem sabe, ou até antes, para o momento exato em que Cristina e Miguel se conheceram. Será que havia sido esse o começo de todo o sofrimento? Instantaneamente, cresceu novamente em mim a fome de entendê-los, não como eram então, mas como eram quando se apaixonaram. "Quem são os meus pais?", de repente, se tornou uma pergunta obtusa e estúpida. "Quem foram?" era o que realmente importava. Ou mais ainda: quem seriam se nunca tivessem se encontrado? Passado e futuro, algozes constantes na minha vida, se uniam mais uma vez para me acossar. Será que Cristina estaria viva não fosse Miguel? - Vamos indo?

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⏰ Última atualização: Sep 21, 2015 ⏰

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