Bem-vinda à família - parte 2

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Mal acreditei quando realmente vi o bolo - um grande desaforo rosa de 3 andares, cobertura e glacê que vinha na minha direção, inocentemente carregado em uma bandeja de prata convenientemente vulnerável. Quis sorrir diante do triste fim que já planejava para o maldito bolo, porém minha raiva era tão forte - da família, do bolo, do rosa bebê estúpido que o cobria - que me paralisou. De repente, eu havia desaprendido a andar, a falar, a respirar: só sabia tremer. Tremer e odiar tudo aquilo. Meus olhos desobedientes se recusavam a fechar - por mais que tudo o que eu quisesse fosse parar de assistir àquele sórdido espetáculo -, e me oferecer pelo menos uma chance de fugir dali e mergulhar nos devaneios da minha mente. Nunca antes tive tanta ânsia de me perder em mim, mas nem eu existia mais. Tudo, absolutamente tudo o que existia era um bolo rosa, um passado me pesando nas costas e uma missão: trucidá-lo.

Simplesmente não conseguia pensar em mais nada, não conseguia ver mais nada. O som sumiu, as pessoas sumiram, o mundo inteiro desapareceu diante de tanto ódio e... Medo. Medo de sentir tanta vontade assim de destruir alguma coisa. Medo do meu próprio ódio. De repente, parecia que todo o sentido da minha vida se resumia a acabar com aquele bolo e atacar aquela gente, que, na realidade, era a minha família. "Família". Me doía fazer o que eu estava prestes a fazer - eu não queria ser essa pessoa que arruína a felicidade alheia e faz as coisas de propósito só para machucar os outros -, mas me doía mais ainda admitir isso e pensar em hesitar, ousar pensar em hesitar depois de tudo a que eles me relegaram, depois de tudo o que me negaram. Me doía o desplante, o cinismo, a ausência - e também a culpa de querer reagir, a culpa que, no fim das contas, delatava a carência infame que eu escondia. Me matava o fato de que eu nunca podia ser quem eu era - ou mesmo ter a chance de descobrir quem eu era - porque estava sempre muito ocupada atacando os outros para me defender ou tentando provar que eu merecia alguma coisa além de rejeição. Aquela festa era só isto: uma espécie de recompensa pelo silêncio do outro lado da linha, como se fosse tão simples apagar tanto tempo de desamor. Meus olhos idiotas se encheram d'água e cheguei a pensar que ia desmoronar ali mesmo, na frente de todos eles, expondo a minha fraqueza e vulnerabilidade em um show inesquecível. Não poderia deixá-los ganhar. Não quando Cristina gritava lá dentro da minha cabeça para fazê-lo. E eu não queria ouvi-la, juro que não queria, mas ela nunca me deixava esquecer quem eles eram... E o que tinham feito. Nunca me deixava esquecer que, não fossem eles, talvez nós pudéssemos ter tido uma relação normal de filha e m...

- Podem servir o bolo! - gritou Jim do outro lado do salão. Segui o som da sua voz e encontrei-o recostado em uma parede, com uma taça de champagne na mão e um sorriso travesso no rosto. Ele sabia o que estava fazendo. Sabia exatamente o que estava fazendo e piscou para mim, como se duvidasse de que eu realmente pudesse fazer alguma coisa. Afinal, o que significava para ele? Não era uma ameaça, uma neta... Não era ninguém.

Todo o meu sangue ferveu de uma vez e, por uns instantes, senti que iria explodir. Já não cabia dentro de mim, se é que algum dia coube. Não aguentava toda a repulsa, a vergonha, o nojo e, principalmente, o ódio que me dominavam de uma forma que nem eu mesma entendia. Quis tanto, e durante tanto tempo, ser bem-vinda ali! Desperdicei anos e anos sonhando com isso, sonhando ser digna de pertencer a essa família que odiava tanto - e cada vez mais. Anos e anos de inconformismo e desespero e gana e obsessão em tentar superar o meu abandono. Simplesmente tentar entender por que ninguém nunca me queria, por que eu era atormentada por essa culpa tão visceral de existir. O que eu tinha feito para eles, para Cristina, para todo mundo? E como eu poderia algum dia consertar o que eu não sabia que tinha destruído, nem como tinha destruído... Como poderia sonhar em remendar os laços que perdi sem nem saber como perdi? Quer dizer, como recuperar o que nunca se teve? Como eu poderia me desculpar sem saber pelo que estava me desculpando? E, sobretudo, como poderia ser livre se não sabia o que me prendia? Mais ainda: como poderia ser, simplesmente ser, se tanto de mim me faltava e me era negado?

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