Os poucos minutos em que permaneci ali, parada, encarando o corredor vazio, foram o suficiente para me desmascarar por completo. Eu não era nem de longe tão forte quanto pensava, tão inatingível quanto tinha me proposto a ser. A minha torre de marfim estava ruindo e parecia que, não importava o que eu fizesse, ela iria simplesmente continuar a ruir e ruir até não sobrar nada - nada além de mim. Uma versão desprotegida, desabrigada e sem armaduras de mim. E, sem as minhas armaduras, como me defenderia do mundo? Como me defenderia da vida?
Absorta, olhei aquela escuridão e pensei nele, pensei nela, pensei em tudo o que queria tanto deixar para trás. E cheguei mesmo a me imaginar livre da minha triste história, por breves segundos. No entanto, tão logo comecei a me sentir bem, me lembrei, com pesar, de que ainda estava lá, de que ainda era Mia, de que ainda estava presa e condenada e abandonada. Sorri de amargura. A realidade estava sempre pronta para puxar o meu tapete. E eu também. Eu não podia me permitir sonhar por muito tempo, porque, no fim das contas, era só isso que me restava: a solidão e a desgraça de um corredor escuro e vazio.
Aquele corredor me conhecia profundamente, na verdade. Ele tinha me visto sorrir com olhos lacrimosos e me entupir de jujuba antes de "receber" a notícia da morte de Cristina, tinha me visto resistir a Ricardo, repudiar meu avô. E, naquele exato momento, me enxergava em toda a minha fraqueza e medo. Pior ainda, dali a pouco tempo, me veria também ir embora, malas prontas e mágoa. Eu não tinha segredos com aquele corredor. Por isso, só por isso, parei de me segurar e me deixei desmoronar ali, segura de que ele me entendia. Talvez fosse o único capaz disso, porque era coisa e não existia; e eu era coisa, louca para cessar de existir.
Encostei na parede com um grande nó na garganta e, já sem forças, fui escorregando até o chão frio e sujo, plenamente ultrajada. Nunca antes havia estado tão consciente da minha própria impotência: eu não tinha o menor controle sobre a minha vida e os ridículos eventos que nela interferiam. Não tinha controle sequer sobre o que sentia. Então de que valia a pena respirar? De que valia a pena seguir viva se os acontecimentos, escolhas e culpas que me marcavam só existiam porque alguém os arremessou na minha cara sem aviso prévio? Nada da minha "vida" era escolha minha, muito pelo contrário: toda ela era formada por laços e pessoas que eu me esforçava para superar e abandonar.
Ironicamente, a abandonada sempre acabava sendo eu. Por Cristina, pelo velho, por Crystal. Até Crystal. Senti as primeiras lágrimas descerem: eu não era nada além de um fantoche do destino que, de abandono em abandono, sempre ia ao encontro da atopia e da nulidade. Jamais conseguiria escapar da sina de não pertencer a ninguém e nem a lugar nenhum. Talvez eu tivesse nascido para ser um fardo: o feto não abortado, a bastardinha não assumida, a menor de idade de quem a lei te obriga a cuidar e ainda a filha idiota da vizinha morta, que não se toca de que não pode e nem vai ser amada ou querida por ninguém. Por mais que eu odiasse todos que já haviam me machucado e enjeitado, conseguia entendê-los. Eu não valia a pena mesmo e, se fosse outra pessoa, também me abandonaria. Em um beco qualquer, em um parque qualquer, na porta de uma casa qualquer. Eu me deixaria de novo nos mesmos lugares em que eles me deixaram. Foi neles que eu me perdi, afinal. De repente, um pensamento insano me passou pela cabeça: será que se eu voltasse a cada um deles, voltaria também a mim? Será que encontraria pedaços e sonhos largados da Mia de um outro tempo e poderia simplesmente colá-los em mim até ficar completa, curada, bem? O mais provável era encontrar só dor, dores que eu nem sabia que tinha. E, só pela ousadia de querer me encontrar, a vida me tornaria mais despedaçada, mais partida, mais desencontrada. Fechei os olhos de desgosto: eu entendia e apoiava meus algozes. Eu mesma era um fardo para mim, portanto, nem podia julgá-los.
Esmurrei o chão de raiva, essa, sim, minha companheira de todas as horas, minha melhor amiga. Durante tanto tempo havia me refestelado na ilusão de que podia revidar esse abandono, podia simplesmente passar por cima de tudo e esquecer todos aqueles que haviam me esquecido primeiro. Eu podia me vingar - e era isso que me confortava. Mas Cristina e Jim fizeram questão de reaparecer para sabotar a minha vingança. A cretina, que, quando era viva, não detinha nem um décimo da minha atenção, teve a pachorra de morrer para entrar na minha mente. Defunta ardilosa. Em vez de ir logo para o inferno, decidiu passar mais um tempinho me torturando com promessas de que eu seria a próxima. Ora, se queria tanto me ver morta, então não tivesse me empurrado para longe do carro, vaca! Não tivesse ROUBADO a minha tão sonhada morte e me relegado a viver com o seu fantasma e as infinitas lembranças que começavam a aflorar mesmo não sendo bem vindas. E, acima de tudo, me relegado a viver sem saber por que havia sido salva. Era o ímpeto inútil de solucionar esse mistério que me impedia de cumprir a minha vingança e abandoná-la, coisa que eu fazia exemplarmente quando ainda vivíamos sob o mesmo teto.
Já Jim, o vovozinho querido, que, para mim, já estava morto, ressurgiu das cinzas para me mostrar que era possível, sim, eu ser mais infeliz. E eu, que tinha conseguido esquecê-lo, seria afrontada diariamente com a sua insuportável presença, porque, para variar, não tinha opção, como ele mesmo havia frisado. Isso que me enfurecia: eu, Mia, não tinha o direito de revidar. A vida me enjeitava de todas as formas, porém não me permitia desfrutar do prazer de enjeitar ninguém. Ela sempre me devolvia às pessoas que insistiam me renegar - e que também eu lutava para renegar.
Àquela altura, minhas mãos já estavam vermelhas de tanto bater no chão, mas o que me doía era a alma. Era a consciência de que eu estava transbordando, estava deixando vazar de mim tudo o que tinha lutado para ocultar por tanto tempo. Deitei na área que tinha esmurrado antes e continuei a chorar baixinho, remoendo a minha própria decadência. Olhei para o teto, pleno de rachaduras, e pensei na minha torre ruindo e ruindo e ruindo... Em algum momento, eu não aguentaria mais fingir que não sentia nada além de raiva, ódio, frustração. Em algum momento, também eu iria ceder às rachaduras e desabar. E esse seria o meu fim.
Antes que pudesse me impedir, comecei a lembrar do parque. E, para o meu terror, vi surgirem, na escuridão complacente do corredor, os mesmos raios de Sol pérfidos daquele dia, as mesmas borboletas coloridas voando baixo... E Cristina. Impassível, resoluta, absolutamente ciente do que estava fazendo. "Mas volta logo, né?". Não, criança estúpida, ela não ia voltar. Ela não estava nem aí. "É um parque bonito, não é?". Não, não, não... Acordada, não. Por favor, não. "Você me atrasa, entende?". "Não, não entendo, cretina! Não te entendo!", berrei. Depois me revirei no chão frio, fechei os olhos, tampei os ouvidos e tentei pensar em outra coisa, qualquer outra coisa. Mas era tarde demais: ela já estava dentro. "Daqui a pouco, eu volto para te buscar". "MENTIRA!". Fechei com ainda mais força os olhos e bati de leve a cabeça no chão, ainda tentando me livrar da lembrança. "Mentirosa, cretina, vai embora. VAI EMBORA!". Bati a cabeça com mais ânimo, mas nada. Abri os olhos e, de repente, ela estava lá, sorrindo. Só um rosto ensanguentado no meio das rachaduras do teto. Ela abriu a boca ferida e se limitou a repetir as mesmas palavras de 10 anos antes: "fala que você é neta, NE-TA, dos Albuquerque de Moraes". "Sai daqui, sai daqui agora!". De repente, estava chorando com tanta intensidade que nem conseguia gritar com o rosto, apenas chorar compulsivamente, como uma menininha abandonada em um parque. Bem feito para mim, quem mandou amar as pessoas? Quem mandou confiar na Crystal? Quem mandou desistir de tomar os remédios naquela manhã? Se você tivesse se matado naquele dia, Mia, não estaria passando por isso. Não estaria passando por nada! Idiota, covarde, ridícula! Eu batia os pés e jogava minha cabeça com cada vez mais força no chão, chorando de dor. Crystal apareceu, de súbito, na porta do apartamento e veio até mim, horrorizada. "O que você está fazendo, Mia, o que você ta fazendo!?!". Desesperada, tentou segurar meus braços e me impedir de continuar, porém só me deu mais estímulo. Ela também era culpada de eu estar ali, ela tinha me vendido para Jim, ela tinha me dado de bandeja para o homem que destruiu a vida de Cristina e a fez me odiar para sempre. Ela também estava me abandonando, então por que o horror? Por que a surpresa? Não era isso que todos queriam, que eu desaparecesse, que fosse brincar com os vermes, como Cristina? "Você é responsabilidade deles agora", o rosto continuou. Determinada a fazer o favor que não tinham coragem de me pedir, ignorei as súplicas falsas de Crystal, que chorava junto comigo, e choquei a cabeça uma derradeira vez. Minha visão ficou turva e, lentamente, tudo foi sumindo e o meu corpo relaxou. Em meio aos gritos de socorro de Crystal, me imaginei morrendo. Sorri e me lembrei das últimas palavras de Cristina no parque. "Boa sorte".
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Mizpah
General FictionE não é aterrorizante o pensamento de que podemos amar alguém e só nos darmos conta quando já for tarde demais? Quantas pessoas amamos sem saber? E quantas pessoas já perdemos sem nem desconfiar que amávamos? De repente, em um belo dia, acordamos e...