Kaellius
Estou correndo pela floresta.
Por algum motivo estou assustado. Olho para trás enquanto corro constantemente.
Corujas estão assobiando de dentro dos troncos. Os galhos das árvores formam um teto e quatro parede, como se fosse uma cela.
Olho para trás e tropeço em um tronco.
Caio de costas no chão.— Não tem como escapar, porco. — Uma voz sombria saí de algum lugar. — Você nunca irá escapar.
Meu coração acelera. Meus olhos ficam mais redondos.
Estou com medo.— Está ouvindo, porco?
Porco?
Acordo em um pulo.
Os soldados estão dentro da minha cela. Estão rindo como nunca.— Estava tendo um pesadelo, bebezão?
Riem mais.— Vão se foder. — Digo.
— Cuidado com o linguajar. — um dos soldados fala. — Não vai querer ficar sem a língua.
— O que querem? — pergunto, impaciente.
— Viemos deixar seu café da manhã.
O soldado de cabelos ruivos lança um soco em meu rosto.Acabei de despertar, estou sem forças. Não consigo levantar.
O outro soldado chuta minhas costelas, a bota com a ponta de aço reverbera em meus ossos, sinto-os estilhaçar.
Estou sem ar.
— Está fraco hoje. — diz o soldado baixo. — Assim não teremos diversão.
— Voltaremos mais tarde. Não nos decepcione, porco.
Minhas costelas ardem de dor. Consigo subir até a cama e me deito.
Estou me contorcendo de dor.
Estou realmente fraco.
Meu corpo demora para se recuperar. Depois de alguns minutos sinto o sangue ferver, e sinto meus ossos se realocando.
Grito intensamente.
Por isso sou o favorito dos soldados. Não importa o quanto eles façam comigo, sempre vou me curar, a não ser que seja um golpe mortal que não dê tempo do meu corpo agir.
Por isso me procuram para me bater, me torturar, pois sabem que irei ficar novinho em folha em alguns minutos, ou quase isso.
Meu poder está bloqueado pela coleira em meu pescoço, mas a regeneração é um mecanismo de defesa do próprio sangue bruxo.
Quanto mais forte o bruxo estiver, melhor será a regeneração. Porém, estou fraco e sem comida à dias, o que resulta em uma costela com sequelas. Ou em costas com mais cicatrizes de chicotadas do que sou capaz de contar.
Meu corpo inteiro é uma grande cicatriz. Minha vida está ferida, uma fenda gigantesca, e para isso, eu temo que não tenha cura.
Respiro forte.
É triste reduzir uma pessoa a seu passado. Bem, se uma pessoa possui um passado traumático, então ela sempre será vista como alguém traumatizada, e não importa o quanto ela tenha superado, nunca deixará de ser vista pelo que passou.
Não quero isso para mim. Não quero ser resumido a um passado que odeio, um passado que busco com afinco esconder.
Quero ser lembrado por ações que me orgulhe. Não desejo ser lembrado como o homem que teve um passado infeliz. Como o homem que foi feito de refém de guerra e preso.
Se um dia eu poder sair deste chiqueiro, eu pretendo fazer história.
Pretendo reescrever minha história. Fazer dela algo que me orgulhe, e não que me cause repulsão.
Nos primeiros anos, eu tinha esperança que seria resgatado. Que seria levado de volta para casa.
Isso nunca aconteceu.Fazem 20 anos, desde que fui jogado aqui.
Tempo suficiente para a própria cadeia sofrer reformas.Quando me jogaram aqui era só uma caverna escura.
Os homens ficavam amontoados uns nos outros. Quando algum morria, e era jogado de volta, o cheiro ficava dez vezes mais desagradável.
Cinco anos depois a prisão sofreu reparações. Colocaram os próprios prisioneiros para reformar o que seria nossa casa. Era isso que os soldados diziam.Passamos alguns anos, cavando, empilhando pedras, carregando portas de metal, e outras mil coisas.
Foi nesse tempo que consegui minhas cicatrizes nas costas.Qualquer errinho era punido com chicotadas.
Os homens que residem nas outras celas hoje são outros.De todos aqueles que construíram isso, apenas eu sobrevivi.
Allon chegou depois. Foi só eu e ele por um bom tempo.
Não sei porque colocaram ele na mesma cela que eu quando havia centenas de outras livres. Por um tempo, achei que a intenção era foder minha vida mais um pouco. Acabaram deixando-a menos pior.
Me deram uma companhia, e depois o tiraram de mim.Hoje eu percebo que não queriam foder minha vida colocando outra pessoa na minha cela. O que realmente queriam era que eu me afeiçoasse a pessoa, criasse laços com ela, para que depois, podessem matá-la. Assim, me causando uma dor irreparável.
Pelo visto conseguiram.
Agradeço por Allon não ter vindo na época das construções. Não que o sofrimento dele tenha sido mais leve por chegar aqui depois que a prisão foi construída, só acho que não o conheceria como conheci enquanto ele ficou na minha cela.
Chega a ser egoísmo pensar assim, mas Allon me entenderia se estivesse aqui.
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A Princesa Perdida
FantasíaVallerye Exmoor nunca se preocupou com o fato de viver sempre dentro dos limites do castelo. Sua vida inteira fora rodeada por coisas que desejava, para assim compensar os anos presa entre aquelas paredes de concreto. Tudo muda quando um acidente e...