Capítulo VII

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Vaarion ainda está dormindo.
Eu, por outro lado, estou mais do que acordada. Estou sentada na janela enquanto escrevo ideias que tive para uma nova música. Nada que seja tão glorioso, mas que ainda assim me deixa feliz.
Vaarion atrapalhou meus planos para ontem, estava decidida a falar com meu pai sobre o acidente. Ainda estou decidida, e irei atrás dele o mais rápido possível. Não posso adiar isso por mais nenhum segundo. Por mais que eu tenha atrasado essa conversa fatídica, eu fiquei feliz por ter compartilhado o momento de ontem com meu amigo. Além do mais, acho que não suportaria uma briga com meu pai do jeito que estava ontem. Meu corpo ainda latejava um pouco, e minha cabeça ainda parecia girar em alguns momentos. Hoje me sinto renovada, e mais do que pronta para esse diálogo. Ou pelo menos espero que esteja.
Paro de escrever quando ouço Vaarion se remexer na cama. Ele está despertando aos poucos, os raios de sol fazendo com que ele esfregue os olhos repetidas vezes.
— Pode, por favor, fechar a janela? — Sua voz está inebriada em sono e cansaço.
— Você dorme na minha cama e ainda quer o direito de mandar na janela do meu próprio quarto? — Estou sorrindo para ele, que, ao contrário de mim, está fazendo uma cara patética.
Vaarion levanta, e só então percebo o quanto está alto.
Ele cresceu muito esses últimos anos, se tornou um homem que facilmente seria desejado por todos.
— Não consigo imaginar como alguém tão alto possa ter o cérebro tão pequeno. — Brinco, mas ele parece não gostar muito. — De fato, um Cabeça de Pedra.
— Isso é empatia. — ele diz chegando mais perto da janela. Seus cabelos estão desgrenhados. — Você conhece? Ou é incapaz de sentir isso?
— Não confunda empatia com folga, seu mimado.
— Ei! Não me chame de mimado.
— Mas você é mimado.
Ele fica emburrado, fica assim por um longo tempo.
— Está vendo. — digo sorrindo. — Mimado.
Vaarion agora parece estar mais concentrado no que estou escrevendo. Parece interessado.
— O que está fazendo? — pergunta.
— Trabalhando em uma nova canção. — coloco o caderninho e a pena próximo aos meus pés.
— Posso ver? — ele está animado, mas temo acabar com essa alegria rápido demais.
— Não mesmo. Ainda não está pronto. — ele muda o semblante para algo como tristeza. Vaarion pode ter crescido, mas ainda é um bebezão que precisa, de fato, ser mimado.
— Você sempre diz isso, Garotinha. — Ele levanta os braços pra cima. — Nunca deixa eu ver suas canções, nunca toca nada para mim.
Ele está certo, desde que nos conhecemos e eu aprendi a tocar instrumentos, Vaarion pede que eu toque uma música para ele. A questão é que eu tenho muita vergonha do que eu escrevo. Tenho receio sobre a forma que toco. Para mim, nunca é o suficiente. Nunca está completamente bom. Então eu sempre arrumo uma desculpa para fazer com que ele esqueça momentaneamente.
Foi assim desde sempre, e com certeza continuará assim até o fim.
— Prometo tocar depois. — minto. — Tenho coisas a fazer agora, como falar com meu pai. E você deveria ir para seu quarto, seu Cabeça de Pedra.
— Só pra deixar claro, — Vaarion fala indo em direção a porta. — não acredito em você, Garotinha.
Ele abre a porta, passa por ela e depois tranca.
Longos segundos de silêncio, e...
A porta abre novamente e Vaarion deixa exposto apenas seu rosto e parte de tronco.
— Boa sorte, com seu pai. Se precisar de ajuda sabe onde me encontrar.
— Obrigada, Cabeça de Pedra.
Sorrio, e ele sorri de volta antes de fechar a porta novamente.

Estou caminhando pelos longos corredores em direção ao quarto de meu pai. Poderia ir na sala do trono, mas ainda está cedo e, nesse horário, ele nem ao menos deve ter despertado.
Meu quarto fica na ala leste do castelo, e o de meu pai na ala sul. Me apresso em subir algumas escadas, mas tomo cuidado para não escorregar.
Ainda estou pensando em como iniciar essa conversa, mas não adianta, quanto mais eu penso, mais eu acho que essa será a maior besteira da minha vida. Mas, na posição que estou agora, não tenho muita coisa a perder.
Chego no topo da escada e viro para direita e dou de cara em mais um corredor. Conheço este lugar como a palma da minha mão, mas ainda assim fico abismada com o fato de ter tantas portas e corredores inúteis. Para alguém que nunca visitou esse castelo, vai parecer mais um labirinto do que um palácio em si.
Para minha sorte, só preciso virar mais uma vez à direita, dar mais alguns passos, e finalmente chegar bem em frente à porta dos aposentos de meu pai.
É enorme.
A porta é branca, com alguns detalhes azuis.
Tem uma águia bem no centro em dourado, com uma coroa repousando em suas garras.
É a coroa real.
Bato uma vez na porta.
Nada.
Duas vezes.
Nada novamente.
Quando estou perto de bater pela terceira vez dou de cara com meu pai bem à minha frente.
Está usando um roupão de linho cinza, os cabelos ainda estão bagunçados.
Com certeza ainda estava dormindo, e não consigo me sentir mal por acorda-lo.
— Bom dia! — As palavras saem da minha boca quase que instantâneo.
Treinei esse discurso por horas e, definitivamente, em nenhum desses treinos ele começou com um Bom dia!
Patética, Vallerye Exmoor! Você é patética. — Digo para mim mesma.
— Bom dia. — Ele diz com o tom sério de sempre. — Entre e me conte o que quer.
Ele se afasta um pouco fazendo a abertura da porta ficar maior.
Então eu entro.
Já entrei no quarto do meu pai antes, é óbvio. Só que agora, parece que estou entrando dentro de uma arena, uma arena de guerra, e eu sou a guerreira.
Concentração. Eu preciso ter concentração.
O quarto dele é cinco vezes maior que o meu, tem tanto espaço aqui que daria para fazer três salas de música. Consigo imaginar essas paredes lotadas de instrumentos.
Meu pai tranca a porta, e então... Não há mais como escapar.
É agora, ou nunca.
— Como está se sentindo? — Ele pergunta. Sério demais. Compassivo demais.
Não acredito que está perguntando isso agora. Aconteceu ontem e só hoje ele teve tempo de se preocupar comigo. E ainda porque eu vim atrás!
Tudo bem que ele é o rei e tem seus afazeres, mas sou filha dele, porra! Será que isso não vale de alguma coisa?
— Não acredito que está perguntando isso agora! — Esbravejo, mas tento manter a calma. — Aquilo aconteceu ontem e só agora teve tempo de se preocupar com sua querida filha?
Ele enrijece a mandíbula, ajeita a coluna e fica ereto.
— Eu iria ver você, mas estava ocupado demais.
— Sou sua filha. Isso não deveria ser uma discussão.
— Entendo. — ele diz, simplesmente.
Poderia concluir isso aqui. Poderia ter ficado em silêncio e saído por aquela porta e nunca mais falar sobre esse assunto. Mas há algo que sobe como fogo em meu corpo, um nó em minha garganta. Não posso sair sem falar o que quero.
— Sobre o acidente... — Começo e me arrependo disso. — Eu temo que o senhor sabia sobre aquilo. Tudo me leva a acreditar que sempre soube e nunca me contou.
— Vallerye...
— Por favor, sem essa! — Interrompo-o. — Sabia ou não sabia? Me conte.
— Sabia. — ele está sério. Não demonstra nenhuma reação.
— Por que nunca me contou?
— Eu queria protegê-la! — Ele lança isso e eu não consigo ter mais controle sobre o que falo. Está na hora de enfrentá-lo.
— Me proteger? — Estou olhando no fundo dos olhos dele, e deixo transpassar a raiva. — Queria me proteger me deixando presa dentro de um castelo por dezoito anos? Acha que isso é vida? Acha mesmo que isso é proteção?
— Olhe bem como fala comigo! Posso ser seu pai, mas ainda sou seu rei.
— Você nem ao menos teve a decência de falar comigo sobre o que era. Quis me proteger mas tudo que fez foi esconder as coisas de mim. — Estou gritando. Jogando as verdades na sua cara. E ele está mais sério do que nunca esteve antes, mas não demonstra raiva nenhuma.
— Silêncio! Não quero mais ouvir uma palavra. Eu tentei lhe proteger da forma que eu juguei necessário.
— E nem ao menos me questionou sobre isso! Toda a minha vida eu fiquei em silêncio porque realmente achava que isso era vida, mas agora eu vejo que não é. Eu só peço uma coisa para você: Deixe-me sair. Deixe-me descobrir o que eu sou.
— De jeito nenhum!
— Por que não?
— Porque essas são as regras, e você deve segui-las.
Agora me sinto furiosa e sem chão. Não quero viver assim para o resto da vida, até porque isso não é viver. Todos esses anos foram ilusórios. Eu preciso de mais, preciso de muito mais além do que meu pai pode me proporcionar.
Eu quero ser livre.
— A verdade, meu pai, é que você teme me perder assim como perdeu a mamãe! — Quando digo isso, sinto que toquei numa ferida que, mesmo depois de anos, ainda permanece aberta. — Se culpa pela morte dela e não suportaria ser culpado pela minha.
— Não diga mais nenhuma palavra. — Ele grita e eu estremeço. — Saia agora daqui! E se pensar em algo eu juro que terei que tomar medidas extremas.
— Não precisa. Já estou acostumada em ser o pássaro enjaulado.
Passo por ele sem olhar em seu rosto.
Puxo a porta e quando saio bato-a com força.
Corro sem direção exata.

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