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Alguns muitos anos atrás...

Sempre fui silenciosa, tão silenciosa ao ponto de se esquecerem sobre mim. Eu vivia dentro de minha cabeça muito mais do que eu devia, e sempre foi assim, eu e eu mesma. Eu nunca fui de participar de conversas, apenas ficava em silêncio todo o tempo. Eu não dizia "sim" ou "não", muito menos defendia minhas opiniões próprias. Sempre, sempre muito silenciosa. E por conta desse silêncio, vi coisas que me dilaceraram por dentro. Inclusive, por conta do silêncio, eu a perdi naquele dia.

- O que esta olhando, [ Nome ]?- Minha mãe afaga uma de suas mãos em minha cabeça, me chamando a atenção.- Gostou do casaco?

Como uma pequena garotinha de sete anos, eu me sentia envergonhada demais para pedi-la que me comprasse aquele casaco vermelho. Eu o queria tanto, e já fazia um bom tempo que eu passava por aquela vitrine, apenas namorando a peça de roupa, me imaginando usando ela.

- Vamos entrar? Talvez tenha o seu tamanho.- A mais velha sorri de forma gentil.

Sem contestar, apenas a sigo para dentro da grande loja de roupas. Como uma mulher muito tímida, foi difícil para ela falar com uma das atendes, mas eu apreciava o seu esforço, esforço que estava sendo gasto comigo. Rapidamente tinha uma peça do casaco no meu corpo, ele havia sido extremamente caro, pelo o que minha mãe me contou, mas ela parecia não ter ligado para um zero a mais nos dígitos do preço. Ela me olhava encantada, e eu não podia deixar de sorrir satisfeita. Era tão frio, minhas pequenas mãos se escondiam nos bolsos enormes. Eu andava alegremente, encarando as pequenas decorações de natal por toda o caminho de volta para casa.

Minha mãe estava extremamente aérea. Eu a escutava cochichar coisas sem sentido, e quando percebia que eu a olhava, apenas fingia um sorriso feliz em seu rosto.

Hoje em dia vejo que o casaco foi mais como um "pedido de desculpas" por estar indo embora, mas naquele tempo, eu não entendia. Eu a via arrumando inúmeras malas, e todas eram escondidas dentro de seu gigantesco guarda roupa. Eu nunca perguntei, nunca nem tive a mínima curiosidade de saber sobre o que era. Eu já sabia, eu realmente já sabia que ela iria embora, por isso não perguntei nada. Achei que se não a perguntasse, ela desistiria da ideia, mas eu estava enganada. Por anos eu culpei aquele maldito casaco vermelho, mas no fundo eu sabia que não era culpa dele.

Assim que pisamos os pés em casa, meu pai veio furioso até a porta, balançando o telefone em nossa frente, gritando escandalosamente.

- Quinhentos reais na porcaria de um casaco?! Você está ficando maluca?! Eu deveria lhe internar!- Sua expressão era de puro ódio.

- Vai se foder!- Ela grita bem alto.

Eu me escolho no lugar, assustada, receosa...

Eles começaram uma enorme briga, proliferando inúmeras palavras sujas e pesadas. Eu odiava a forma como os adultos agiam perto de crianças, sempre diziam "eles não entendem", então eu deveria ser algum tipo de anomalia, certo? Eu sempre entendia as suas brigas, mas eu realmente desejava não saber.

- Papai...- Eu o chamo entre soluços, recebendo o olhar dos dois sobre mim. Meu rosto estava todo molhado pelas lágrimas, minhas bochechas coradas pela vergonha e meu nariz escorria sem parar.- Não brigue com ela, a culpa é minha, eu que queria o casaco...

- Viu o que você está fazendo?- O homem a encara enojado.- Você está a usando para me provocar, não é?

- Eu só quis presentear minha filha! Não estou querendo provocar ninguém, acorde desse seu sonho maluco!- Ela esbraveja com raiva.

- Você é uma desgraçada!- Ele grita com todo o ar de seu pulmão.

Sem dizer mais nada, minha mãe o encara desacreditada. Ela sai em silêncio, caminhando até o próprio quarto. Depois de alguns segundos, volta com malas enormes nos braços.

- Não acredito que vai fazer algo assim. Pense nela, droga!- O mais velho aponta para mim.- Você entende? Isso não é sobre eu e você, é sobre a porra da sua filha!

Minha mãe apenas o ignora, abrindo a porta em seguida. Eu congelei instantaneamente. Ela não ia voltar, e eu sabia, na verdade, sempre soube. Ela passou por aquela porta, mas nada saiu de minha boca. Eu não consegui pedir que ela ficasse. Penso comigo mesma hoje em dia, e se eu tivesse dito isso? Será que teria sido tudo diferente? Eu não sei, realmente não sei. A única coisa que eu sei é que meu eu criança não possuía culpa nenhuma de sua ida, pois não era o motivo dela ter partido.

Eu chorava escandalosamente, puxando o tecido do casaco com força. Meu pai apenas ficou ali, encarando aquela porta de madeira, completamente fechada. Ele não disse nada, não fez nada, apenas ficou ali. Depois de um tempo, ele andou desajeitadamente até a sala. Eu o segui com os olhos, assistindo o mais velho colocar uma música em seu toca discos. Ele colocou um pouco de bebida em um copo e se jogou em sua poltrona de couro, encarando um ponto aleatório da parede. Eu sabia que algo havia morrido dentro de si, assim como em mim.

Desde então, eu odeio aquele maldito casaco vermelho. Não suporto a cor, o tecido e muito menos o seu tamanho. Eu parei de usar vermelho por um tempo, era a minha forma de lidar com esse luto. Os dias seguintes foram cansativos. Meu pai nunca foi de me dar atenção, nem mesmo o mínimo, e depois que ela se foi, ele realmente passou a fingir que eu não existia. E se eu tivesse falado com ele naquela época? Botado pra fora o que eu sentia, será que hoje teríamos uma boa relação? Droga, os dois estavam totalmente devastados e cheios de feridas em seus peitos. Mas eu não podia fazer nada, eu era apenas uma garotinha, uma garotinha de sete anos que sentia culpa por ter ganhado um casaco vermelho.

Com o passar do tempo aceitamos a sua partida, e o assunto nunca mais foi citado. A casa foi dividida, meu pai em seu canto e eu no meu. O contato físico ou verbal era quase que inexiste. Me lembro do último eu te amo que ouvi dele.

No meu aniversário de nove anos, ele me levou pra comer panquecas em um posto de gasolina. Ele pediu com morango, pois sabia que era minha fruta favorita. Seus olhos brilhavam ao me ver comer, um sorriso gentil se desenhou em seus lábios.

- Eu te amo, filha.

Eu vi lágrimas se criarem em seus olhos, mas ele disfarçou perfeitamente.

Eu nunca mais ouvi aquilo saindo de sua boca. Com o tempo ele começou a descontar sua raiva sobre mim, eu escutava inúmeros comentários de mal gosto sobre meu corpo. No dia em que lhe disse que gostaria de ser uma modelo, fui zombada como nunca. E desde então eu sinto nojo de meu próprio corpo. Olha-lo em frente ao espelho me causa arrepios.

Eu queria, eu realmente queria ter tido uma família normal. Uma mãe que te espera em casa após a escola, que te faz uma sopa quente deliciosa. Um pai que chega de seu trabalho, e por mais cansado que esteja, conversa com você sobre seu dia, conta alguma história boba e te coloca pra dormir.

Se existe algum Deus nesse céu, ele deve me odiar imensamente. Mas por que? Por que passei por tudo isso? Apenas por querer um casaco vermelho?

Droga, eu só tinha sete anos.

Eu odeio o natal, pois foi nessa época do ano que ela partiu.

Eu odeio o natal, pois foi nessa época do ano que ela partiu

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Crush- Hinata ShoyoOnde histórias criam vida. Descubra agora