10.02 MHz dos encontros

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"Bom dia, cronista da madrugada"

E assim Trindade encerrou mais uma madrugada em que tentava uma vaga em uma horário mais nobre na rádio. Eram noites solitárias em que ele sabia estar cantando e falando para ninguém...Bom não mais.

A carta tão perfumada lhe deu um novo ânimo mesmo que parecesse besteira. Alguém escuta sua música na madrugada e isso a faz feliz ou menos triste. Ler aquelas linhas logo depois de levar um esporro por chegar atrasado foi providencial. A esposa de seu amigo Tibério precisou de ajuda com o senhorio que lhe causou problemas pelo atraso. Rute era uma boa mulher, mas muitas vezes falava demais, mesmo seu apelido sendo Muda. Por pouco esse contratempo não fez com que ele perdesse o emprego de dupla jornada: canto de madrugada e sonoplasta durante a manhã.

A rotina era cansativa, mas tudo era pelo seu sonho quando ele saiu do interior só com sua viola. Ele mal dormia nesse ritmo e agora ele sabe não estar sozinho. Trindade não deveria, mas começou a imaginar como seria essa princesa como ele nomeou. Ela fala de ser só, mas será que é? Nova ou mais senhora? As palavras dela tinham tanta verdade que pouco importava. A secretária da rádio só aceitou falar como era se ele a levasse para tomar um sorvete, mesmo sem interesse nela e pensando no peso desse passeio em suas economias, a curiosidade venceu na hora de finalmente ir descansar.

-A senhorita, acho pela falta de aliança, era sim bonita, mas não muito nova. Ela era bem diferente porque tinha os cabelos cor de cobre. Algo que gostei muito na assanhada: os olhos. Eram bem azuis. Um azul claro. Também se vestia bem para as iludidas que geralmente chegam aqui. Sábado às 14h no largo do machado. Sem atrasos.

A perspectiva de sair com essa mal humorada era terrível e abusada ainda porque mesmo sabendo que ele tinha que ir descansar, deixou a portaria sozinha com ele enquanto ia pegar um café. Trindade fica agitado ao pensar na moça descrita por ela. Pelo jeito era bonita, mas triste ou solitária.

No vai e vem esperando que a secretária Zefa voltasse, ele dá de encontro com alguém e quando vai pedir desculpas. O olhar mais lindo que ele já viu cruza com o dele e uma voz encorpada lhe pede perdão sem motivo: "Só pode ser ela"

-Você sabe onde estaria a secretária? Eu preciso deixar uma correspondência.

"Era ela e ela era a mulher mais linda que ele já viu"

-Ela saiu, mas eu posso deixar na mesa sem problemas. Prazer, eu sou Xeréu Trindade, ca..sonoplasta da rádio.

Ela fica relutante, mas no fim entrega o envelope perfumado que ele finge deixar sob a mesa e enfia em seu bolso. Infelizmente estaria um pouco amassado.

-Eu sou Irma Novaes e fico muito grata por sua gentileza.

Sua princesa ameaça ir, porém resolve voltar com uma feição questionadora.

-O senhor trabalha na parte da madrugada?

Trindade gela com a possibilidade que ela o reconhecesse e perdesse todo o encanto. A lindeza certamente achava que ele era um homem bem sucedido ou até mais velho pela postura vocal que usava no programa e pelo sotaque carioca que tentava reproduzir. Ele tinha que pensar rapidamente.

-Raramente, geralmente para fazer base no violão, mas faço mais programas matutinos e me chame de você, por favor.

-Então conhece o cantor Encantado? Sabe se ele já foi embora?

Trindade estava com ciúmes dele mesmo. Irma queria se encontrar com Encantado. Aquele patife... No caso ele mesmo.

-Eu vi um par de vezes somente, senhorita. Ele logo vai embora depois do fim do programa.

Ela pareceu bem decepcionada com o "desencontro" . Xeréu se sentiu um canalha por mentir, mas era para não causar mais frustração nela.

-Nossa, estou lhe enchendo de perguntas, mas saberia onde seria a casa de sucos silvestre? Eles estão ajudando o programa e gostaria de retribuir simbolicamente. Além do dia pedir um bom suco.

Ela era encantadora em todos os sentidos. Além de linda, educada e com boas intenções. Trindade resolveu ser mais ousado.

-É perto daqui e também estou precisando de um refresco com bolo. Seria muita ousadia lhe acompanhar até lá?

O sorriso de Irma foi a melhor resposta e depois como eles quebraram o gelo conversando era melhor do que ele poderia imaginar. Ela era inteligente e espirituosa. Nunca um suco de laranja foi tão doce.

O papo rendeu mais que o sono dele gostaria, porém ele se manteve firme até que ela se espantasse com o passar da hora. Ele se oferece para pagar a despesa, mas quando nota ela já havia pago.

-Disse que queria contribuir...Nossa, a vida é curiosa. Quando sai de casa eu nunca imaginaria conhecer e bater papo com um violeiro. Infelizmente eu preciso ir.

Os dois se levantam para a saída e Trindade sabia que ela era realmente uma princesa impossível para ele, mas seu coração perde a razão ao pegar para beijar a mão dela em despedida. O toque macia em seus lábios era divinal. Ele se surpreende por Irma não o censurar.

-Eu amei nossa conversa.... Como posso lhe ver novamente?

-Tem certeza? Eu sou tão monótona...

Se ela soubesse de como ela afastou o sono dele com cada risada dela.

-Eu moro em Copacabana com a minha mãe. Todo domingo após a missa eu passeio no orla...

-A orla é grande...

-E o destino curto. Até domingo, Xeréu Trindade.

Assim ela se vai com seu rastro de perfume floral e o coração dele. Domingo...Ele passou a amar o Domingo.

Trindade dormiu poucas horas, mas não antes de reler algumas muitas vezes a carta de Irma. Ela era tão maravilhosa escrita quanto presencialmente.

Na hora de começar o trabalho, ele só pensava no olhar dela....

"Bom dia, povo querido.... Sim,princesa. Li sua carta com muita atenção

e concordo sobre a madrugada ser a melhor parte do dia. Ansioso para a próxima carta. Hoje quem vai tocar é meu colega de rádio: Xeréu Trindade. Enquanto canto o que toca seu coração "

O Tibério só olhou com reprovação, mas ele já estava com saudade de sua princesa.

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