Ⅰ - Olhos brancos

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— Você sabe, eles estão ficando mais rápidos. — A garota de roupas esfarrapadas fez uma pausa, seu olhar impaciente. — E eu fiz minha parte, quero a minha grana.

Lise era uma figura que chamava atenção. Seus olhos redondos, incomuns para uma garota de origem chinesa, a faziam ser confundida com uma japonesa. Era pequena, magra, e sua pele pálida sugeria uma longa convivência com a fome. O ambiente ao seu redor refletia uma frieza quase calculada, assim como o homem sentado diante dela.

O homem, vestido com um terno preto impecável e cabelos milimetricamente arrumados, inclinou-se na cadeira de couro. Seu sorriso era quase paternal, mas seus olhos brilhavam com uma crueldade sutil.

— Lise, minha querida. — Ele falou em um tom afável. — Agradecemos pelos seus serviços, mas... ainda precisaremos de você.

— Para quê? — A impaciência transparecia no rosto jovem, mas já endurecido pela vida nas ruas.

O homem levantou-se e caminhou até a enorme janela atrás de sua mesa. A cidade se estendia como um campo de cinzas, nebulosa, um emaranhado de prédios arruinados pelo tempo e pela guerra.

— Há uma garota... uma de nossas cobaias. Ela fugiu. — Falou calmamente, como se aquilo fosse apenas mais um aborrecimento em seu dia. — Acredito que agora seja uma adolescente. Precisamos recuperá-la antes que... — Ele virou-se, seus olhos escuros encontrando os de Lise. — ...antes que os rebeldes a encontrem.

Lise franziu a testa. Ela sabia o que "cobaia" significava. Já havia feito esse tipo de trabalho antes, rastrear experimentos fugitivos. Mas algo na maneira como ele falava daquela garota a incomodava.

— E por que eu? Não tem um monte de homens à sua disposição?

O homem aproximou-se, movendo-se com a suavidade de um predador, e segurou o queixo de Lise com delicadeza.

— Porque você, minha cara, — disse ele, com um leve sorriso — é a única que se parece com um deles. Ou não tenho cuidado bem de você? — O sorriso agora sugeria outra coisa; ela sabia que aquele homem foi quem a tirou das ruas. Sua própria existência era graças a ele, e enquanto ele precisasse, ela deveria demonstrar gratidão e lealdade. Claro, sendo o seu melhor soldado.

****

— Tia, por que eu nunca posso sair? — perguntou a garota de longos cabelos negros que escorriam por seus ombros, sua voz soando com uma mistura de curiosidade e frustração. Seus olhos eram uma anomalia: um castanho-escuro e o outro de um branco-prateado que cintilava estranhamente à luz fraca do cômodo.

A tia, uma mulher marcada pelo tempo e pela luta, suspirou. Ela observou a sobrinha, sentindo o peso da proteção que havia jurado dar. Seus próprios olhos, antes vibrantes, agora carregavam uma tristeza contida.

— Porque o mundo lá fora não é seguro para alguém como você — disse a mulher, acariciando o rosto da garota com carinho. — Eu já vi o que ele faz com pessoas frágeis.

— Mas eu não sou frágil! — protestou a garota, com uma súbita explosão de energia adolescente. — Quero ajudar! Quero sair com você e procurar mantimentos!

A mulher fechou os olhos por um momento, tentando conter a dor que sentia ao ouvir aquelas palavras. Ela desejava mais do que tudo poder dar à sobrinha a liberdade que merecia, mas sabia que o que a aguardava lá fora era muito pior do que qualquer sonho ou desejo que a garota pudesse ter.

— Tudo o que posso oferecer a você, minha pequena, é o meu amor e minha proteção. Enquanto eu puder andar e lutar, você não precisará se arriscar.

O silêncio pairou no ar, tenso e desconfortável. A garota mordeu o lábio, frustrada, mas antes que pudesse protestar mais, um som cortante interrompeu o momento.

Bateram na porta. Forte. Determinado. Como se quem estivesse do outro lado não estivesse disposto a esperar.

A garota olhou para a tia, seus olhos arregalados em confusão. A tia, porém, permaneceu imóvel por um breve segundo, antes de falar com uma calma que traía a gravidade da situação.

— Escute, — disse a tia rapidamente, mas com uma urgência clara na voz — se esconda. Não faça barulho. E se algo me acontecer... você deve correr. — Sua voz vacilou por um segundo, mas ela engoliu as lágrimas. — Encontre Ervé. O número dele está na gaveta.

— Tia, o que está acontecendo? — A garota tremia, sentindo o pavor crescer em seu peito.

Vou te proteger — disse a tia, olhando para ela com olhos cheios de tristeza, antes de desaparecer pela porta, trancando-a por fora.

A garota ouviu os passos descendo as escadas e, então, o som avassalador da porta da frente sendo arrombada. Três homens armados, uniformizados como soldados recrutadores, entraram com força.

Do meio deles, surgiu uma figura menor, mas não menos perigosa — o soldado mais letal: Lise.

— Estamos procurando uma garota — disse Lise friamente, seus olhos afiados como facas. — Qual é o seu nome?

— Eu sou Leslie Xang...

Leslie, ou "tia" como era chamada pela sobrinha, sentiu seu coração acelerar. Ela havia passado anos se escondendo, esperando que nunca viessem atrás delas. Mas agora, o passado batia à porta com violência.

— Uma garota? — Ela tentou soar inocente, mas sua voz tremeu levemente.

— Sim — Lise disse com um sorriso gélido. — Ela deve ser adolescente agora. Seus olhos são bicolores. Um deles é branco. Reconhece?

Leslie lutou contra a maré de pânico que se formava dentro dela.

— Não sei do que está falando. Moro sozinha.

Lise continuou, brincando com seu canivete butterfly, girando-o entre os dedos com precisão.

— Ah, entendo... — murmurou, sua voz carregada de ironia. — Não sabia que mentirosos eram tão ruins hoje em dia.

Os guardas ao lado de Lise riram, mas o sorriso da garota não se ampliou. Ela se aproximou lentamente da mulher, inclinando-se até que seus olhos ficassem na mesma altura.

— Sabe, eu não gosto de mentiras. Principalmente quando já sei a verdade. E eu sei quem você é, Xiao Fang.

Xiao — "Leslie" — estremeceu ao ouvir seu nome verdadeiro. As lembranças do passado a atingiram como uma tempestade. Ela sabia que não havia mais saída.

Com um grito desesperado, ela sacou sua arma, mas sua mão tremeu. O disparo foi ineficaz, e antes que pudesse reagir, Lise já estava em cima dela, rápida e mortal como uma sombra. As lâminas acertaram com precisão, imobilizando Xiao.

— Podem levá-la — disse Lise com indiferença, enquanto os guardas brutalmente algemavam Xiao e a jogavam no chão.

Lise então subiu as escadas, em direção ao quarto onde a garota se escondia. A porta estava trancada. Com três chutes fortes, Lise a arrombou.

Lá dentro, uma figura se destacava na penumbra. A jovem, de longos cabelos desgrenhados, a observava com uma expressão indefinível. Um olho castanho, o outro... branco. Gélido.

— Venha comigo — ordenou Lise, sua voz firme.

Mas a garota não se moveu. Algo mudou em seu semblante. Um sorriso estranho começou a se formar em seus lábios, e então, de repente, um vento feroz varreu o quarto, jogando Lise contra a parede com uma força inexplicável.

Lise, atordoada, mal conseguia acreditar no que estava acontecendo. "O que fizeram com ela?", pensou.

A garota, agora ajoelhada no chão, ergueu o rosto. Seus olhos voltaram ao normal. Uma lágrima de sangue escorreu de seu olho branco. Ela se levantou rapidamente, pegando o número de telefone anotado em um papel na gaveta da cômoda e, sem hesitar, abriu a janela.

Antes de pular, olhou uma última vez para o quarto, como se dissesse um até logo ao invés de um adeus.

— Me desculpe, tia. Eu vou voltar por você.

E sumiu na escuridão da noite.

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