XV - O sol regressa, a tempestade acaba

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Ela sentia as pernas a tremer, o coração aos pulos, o suor gelado descer pela curvatura das costas, a garganta tapada e a boca seca, mas iria enfrentar corajosamente aquela situação, pois pelo futuro da sua filha estava disposta a lutar até ao limite das suas forças, mesmo que soubesse, interiormente, que vencer as pessoas mais ricas do mundo não seria tarefa fácil. E era o corpinho quente da sua amada bebê, nos seus braços rígidos, que a mantinham lúcida e inquebrável.

A frescura do automóvel da polícia, causada pelo ar condicionado, enganava-a, por instantes sentia-se confortável e abstraída do que a rodeava. Fechava os olhos, sustinha a respiração e tudo era simples, claro, direto. Mas quando a voz metálica aparecia pelo intercomunicador montado no painel dianteiro da viatura, seguida de estalidos, com informações transmitidas pela central da polícia, despertava do transe momentâneo e recordava-se que estava sob custódia policial, entalada entre dois agentes da lei, no banco de trás de um automóvel que corria pelas estradas da cidade com o sirene aberta a soar estridente.

Estava a ser tratada como uma criminosa e as sensações ruins – as pernas a tremer, o coração aos pulos, o suor gelado, a garganta tapada e a boca seca – regressavam com redobrada intensidade. E continuava a ser o corpinho quente da sua bebê a salvá-la da loucura.

Apesar de os seus protestos continuarem pela estação de comboios afora enquanto estava a ser levada pela polícia, afirmando categoricamente que era a mãe daquela criança, que devia haver alguma confusão, que ela não tinha feito nada de mal, que poderiam fazer os testes que quisessem pois estes haveriam de provar que ela era efetivamente a mãe e que aquela bebê era efetivamente a sua filha, fora completamente desarmada quando, acabados de sair do edifício da estação, um dos polícias aparecera diante dela, empurrando dois rapazinhos. Reconhecera-os, havia sido eles que a tinham seguido na Capsule Corporation. Nesse momento, soubera que estava perdida, que as hipóteses estavam todas contra ela, mesmo que um qualquer exame provasse que ela era a mãe biológica da bebê adormecida que carregava.

- É esta a garota que viste na zona privada da tua casa?

O rapazinho dos olhos azuis e cabelo lilás acenara afirmativamente com a cabeça.

- Hai. É essa mesmo.

O rapazinho dos olhos negros e cabelo espetado também negro acenara que sim e respondera:

- Hai.

O polícia atrás dos meninos sorrira e concluíra com um sorriso que seria de satisfação, mas que a ela lhe parecera malvado, a maneira de um carrasco sorrir antes de desferir o golpe fatal:

- Temos uma identificação positiva. A suspeita foi encontrada. Levem-na!

Entrara no automóvel e o mundo inteiro desabara sobre os seus ombros, numa cascata de entulho que a deixara perdida e temendo pelo futuro da sua bebê.

***

Quando a sirene barulhenta se calou, ela abriu os olhos – não se recordava exatamente de os ter fechado recentemente – e isso significou que tinham chegado à Capsule Corporation. Os dois polícias que a ladeavam saíram ao mesmo tempo do automóvel, deixando-a no banco de trás por um par de segundos, tempo suficiente para que ela entendesse que estava definitivamente condenada. Por sorte, a bebê dormia como um anjo, muitíssimo longe do reboliço e dos problemas. Escutou um grunhido do lado de fora que teria sido uma ordem para que ela saísse e ela obedeceu. Primeiro, não sentiu as pernas, mas descobriu que estava definitivamente em pé ao encarar o enorme edifício amarelo em forma de cúpula, gigantesco, onde se iria desenrolar o último ato daquela peça teatral de má qualidade, que ela não era nenhuma atriz excecional. Era sim, uma sobrevivente, desde que tropeçara nos fatos reais da vida, desde que encontrara aquele maldito homem que a tinha enfeitiçado com os seus olhos cor-de-mel e muito dinheiro.

Tempestade de PrimaveraOnde histórias criam vida. Descubra agora