Capitulo XIV - Aurora

52 15 54
                                    


O TEMPO PASSOU E ELA COMEÇOU A IMPLICAR COM O INÍCIO DOS MEUS DIAS. Dizia que eu precisava mudar minha rotina. Me observava de longe nas manhãs em que eu saía para as entregas de milho, e toda vez que voltava a ouvia reclamar. E no fundo ela tinha razão.

Na verdade, Yelena só implicava com a "exagerada" cortesia com que eu tratava os clientes. Sugeria mudanças significativas que até faziam sentido, mas a mim soavam como uma quebra da tradição.

— Não vejo motivos pra tu fazeres as entregas. — Ela reclamou, certo dia de manhã, quando me desfizera da conchinha gostosa em que estávamos envolvidos sob os lençóis, e me aprontava para mais uma entrega. — Eles nem te pagam a mais por isso, Lúcio...  Não faz sentido! A menos que tenhas outros motivos pra sair de casa todas as manhãs! — Insinuou, arrancando de mim uma risada sutil.

— Talvez tenha mesmo... — Respondi provocando e me retirei em seguida. Ela me seguiu até a sala, ainda com a roupa de dormir e um andar preguiçoso, arrastando as pantufas pelo piso de madeira.

— Eu tô falando sério, Lúcio... Volta pra cama, amor, o sol ainda nem nasceu. Deixa essa entrega pra amanhã. Você não vai dizer não a sua mulher que está grávida, não é?

— Foi assim que ontem você me convenceu a ficar, lembra?

Ela sorriu sem vergonha e justificou:

— É que eu não quero ficar sozinha... — Olhou para sua barriga com uma expressão de "neném querendo colo" e apelou. — Na verdade, nós não queremos ficar sozinhas.

Sorriu como quem tinha consciência da  manipulação que fazia.

— Vocês vão ficar bem, amor. Eu não vou demorar, você vai ver. É que o Sr.Aldair é um cliente antigo, da época do seu pai. É tão velhinho que me dá dó fazer ele vir até aqui buscar os sacos de milho, meu amor.

Ela se comoveu. Aceitou minha saída, relutante, mas fez questão de me levar até a varanda onde,  enquanto me afastava, pude vê-la pelo retrovisor fazendo tchau para mim. Acenando com uma mão enquanto a outra passeava carinhosamente sobre a barriga enorme que abrigava o nosso pequeno projeto de vida.

A imagem desse momento ficou gravada em minha mente que nem um quadro pintado. Seu cabelo bagunçado, o pijama amassado e a cara de recém acordada contribuíam para fazer daquela, uma visão sem igual, e o tom claro da madrugada anunciando o aproximar do sol trazia o Jenesequá necessário para que aquele fosse um momento facilmente memorável.

Quem poderia querer mais? Eu, com certeza não.

Tinha uma fazenda linda, numa terra fértil e plantações que geravam frutos pelos cotovelos. Animais de diferentes espécies que eram tratados com amor, e retribuíam a nós com o melhor que podiam. Tinha também uma casa linda, com a melhor vista para a segunda coisa que mais amava, e ainda podia apreciar essa vista de mãos dadas com a primeira. Sendo que essa, por sua vez, carregava em seu ventre alguém com quem dividiria o pódio, e melhor, ela fazia questão que assim fosse.

Resumindo, eu estava feliz.

Enquanto dirigia pela estrada de terra, observei que parte do sol já se mostrava no horizonte, exibindo sua luz sobre as planícies e iluminando parcialmente a terra. O reflexo da alvorada maquiava o céu e dourava a visão do pára-brisas, tornando o horizonte mais lindo. Tinha também aquela brisa suave, que invadia a janela e paquerava meu cabelo curto com galanteios que o deixavam voando. Era tão mágico que o tempo nem passava. E lembro que foi ali, num momento de transe, que meus lábios se abriram lentamente e com sutileza proferiram o nome: "Aurora." E naquele momento eu soube que aquele seria o nome perfeito para a nossa menina.

Até Que MorramosOnde histórias criam vida. Descubra agora