A espera

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— Wednesday, querida, veja que noite maravilhosa temos hoje! — mamãe comentou enquanto apontava pela janela do meu quarto, o céu estava completamente nublado e parecia que logo teríamos uma tempestade — Já está na hora de você começar a treinar seus poderes e entrar em contato com os espíritos da nossa família.

Durante as aulas no instituto Nevermore, eu tive meu primeiro contato com o espírito de minha descendente, Goody Adams, e consegui ter acesso a visões do futuro e do passado, mas nada mais ocorreu desde que voltei para a mansão. Apesar do olhar de desgosto de minha mãe ante minha inabilidade ser bem vindo, eu também estava começando a ficar frustrada por não ver mais nada, como se todas aquelas visões servissem apenas para me levar a enfrentar Crakcstone. O que era injusto, minha vida ia muito além de meu primeiro livro de mistérios!

— Está sugerindo que...

—Sim! Vamos acampar no cemitério! Pugsley já está pegando lenha e abrindo uma cova para colocarmos os caixões, mas tenho certeza que ele apreciaria a ajuda da irmã.

Levantei empolgada. Não podia continuar esperando O Corvo em meu quarto como se minha vida girasse ao redor de Tyler. Pegar chuva me faria bem, com sorte teríamos uma bela chuva de raios enfeitando o céu noturno.

Com esse pensamento otimista, peguei minha pá e me juntei ao meu irmão no quintal. O pequeno, não tão pequeno assim, estava com alguns arranhões na cara depois de colocar um guaxinim no armário de um dos rapazes do time de polo aquático. Eu esperava alguma reação mais explosiva contra os babacas que faziam bullying com ele, mas nada como a boa e velha técnica de arrombamento somada com roedores famintos. Era bom vê-lo crescendo, mal se parece com o nanico que eu costumava trancar em um armário cheio de formigas.

Pensar em formiga me lembrava abelhas e logo a imagem de Eugene pairava em minha mente. Tenho certeza que ele e Pugsley seriam bons amigos, caso o pirralho aprontasse algo bom o suficiente para receber um mandado de condicional.

O quintal parecia o mesmo de sempre, exceto por uma vala milimetricamente perfeita e uma terra fofa ao lado. Amador, mas bem pensado.

— Oh não, onde será que Pugsley se meteu?

Ouvi uma risadinha abafada e a terra se movendo no chão. Caminhei naquela direção e pisei na terra fofa onde calculava estar perto de seu braço direito. Havia um capricho genuíno em sua pegadinha, ele merecia concluí-la.

—Te peguei!

No mesmo instante, uma mão saiu da terra prendendo meu tornozelo. Tive tempo apenas de soltar a pá ao cair sobre a terra ganhando um abraço terroso do caçula Adams.

—Seu pestinha!

— Também estou feliz de ver, mana. Ficar tanto tempo presa em seu quarto vai acabar te deixando desleixada. Logo logo vai querer um celular, fones de ouvido e... Você sabe, ouvir música pop.

—Eu me enforcaria antes disso. Ou no mínimo deceparia minhas mãos.

É claro que o pequeno não sabe que ganhei um celular de um amigo de Nevermore. Mas o máximo que fiz durante as últimas semanas foi reagir com risada e cara de tédio nas fotos que recebi de Enid. Era nosso jeito de dizer que sentíamos falta uma da outra. Mais ou menos.

Logo terminamos as preparações para dormirmos no cemitério. Felizmente a chuva começou assim que entramos nos caixões. A perfeita melodia para entrarmos no mundo dos sonhos.

***

Senti meu corpo livre correndo por uma floresta densa, como uma besta. A terra úmida entre meus dedos se chocava com os cascalho e folhagens seca de outono e emanava um curioso cheiro podre de mofo e cogumelos. Livre como nunca! Livre como se pudesse fazer o que meus mais delirantes impulsos desejassem.

Olhando com mais cuidado para baixo, notei que meu corpo era coberto por uma penugem cinzenta, mas o que prendeu minha atenção era a anatomia animalesca familiar. Eu era um Hyde. Mais do que isso, o caminho que seguia me fazia pensar que seguia para o sul em direção a Westfield, para a mansão Adams!

Acordei com batidas na tampa do meu caixão. Não recebi a visita de nenhum espírito, exceto, é claro, pelo meu tormento particular de pensar em Tyler.

Com algum esforço dos meus pés e mãos, consegui empurrar a tampa de madeira e me vi molhada pela lama fresca da manhã. Refrescante. Ali, ao meu lado, O Corvo bicava minhocas saindo da terra enquanto carregava mais um envelope na pata.

—Até que enfim...

Suspirei ligeiramente empolgada. Com a carta em mãos, olhei para as janelas da mansão e vi a família reunida para tomar café da manhã na cozinha. Dei um aceno para Mortícia e me sentei apoiada no túmulo da tia Gertrudes. Hora de mais uma leitura e com sorte, respostas.

Como vai, minha cara adoradora de cadáveres?

Quando vi a goma de mascar negra na câmera de segurança do necrotério, imaginei sua ilustre presença analisando uma de minhas vítimas. O que achou do serviço? Gostaria da opinião de uma especialista, apesar de que sua última carta deixa claro que consegue ver a diferença entre meus trabalhos.

E você está certa, é claro, sobre sua insinuação ao perguntar Como pude fazer um trabalho tão mal feito ao tentar matar Eugene.

Minha antiga mestra já possuía todas as partes para ressuscitar Crackstone e isso a deixou mais desleixada ao me dar ordens. Veja bem, ela não me pediu para matar o garoto, apenas pará-lo. Eu sabia como ferí-lo de modo a deixá-lo internado até próximo a lua de sangue, que é até quando era preciso manter você sem as informações que seus amigo descobriu sobre Lauren. Assim o fiz. Não me entenda mal como um bom samaritano que evita mortes quando não necessárias... Eu solenemente aprecio todo tipo de assassinato. Meu desejo naquele momento, entretanto, era simplesmente de não despertar seu ódio eterno. O garoto foi tolo, como bem sabe, mas não valia a pena matá-lo e arriscar a ínfima chance de poder lhe ver mais uma vez.

Prefiro alimentar a possibilidade de que você ainda seja capaz de me odiar por perto e não uma terrível e distante indiferença.

Se isso for possível, saiba que eu moveria montanhas e selvas para lhe alcançar mais uma vez e poder dizer diante de seus olhos como lhe desejo.

Me puna se quiser, eu mereço, mas saiba que vou apreciar cada segundo de dor.

Sempre seu,

Tyler

As mesmas letras vermelhas. Nunca pensei que me sentiria mexida com apenas algumas palavras escritas, mas quanto mais penso nessas cartas, mais enxergo como essa é a forma mais adequada de me comunicar com o Hyde. Não sei o que poderia fazer se o tivesse à minha frente. Se iria matá-lo ou beijá-lo é uma perspectiva separada por uma linha tão sutil que talvez sinta os dois ao mesmo tempo.

De fato, entender sentimentos será sempre um desafio pessoal impossível.


Wicked game - WeylerOnde histórias criam vida. Descubra agora