Prólogo

165 16 3
                                    

"Não pode ser, isso não pode estar acontecendo!"

Vivo repetindo isso para mim mesma, há dias não paro de pensar essas exatas palavras, tentando de alguma forma me acalmar, como se isso fosse possível.

Minha família chegou do interior há apenas algumas horas, o que quer dizer que a minha casa já está uma bela de uma bagunça, mas não ligo.

Não ligo para os meus primos brincando com os meus jogos, mesmo sem terem pedido permissão para pegarem do armário. Também não ligo para as perguntas nada agradáveis que minhas tias fazem, perguntando sobre "os namoradinhos". Ou ainda, não ligo para os meus tios discutindo quem irá ficar com o que da herança.

Não ligo para mais nada desde quando meu pai morreu. Só sinto dor e raiva. Mas ninguém parece ligar muito para o meu estado, ou pior, para o estado da minha mãe, pois apenas falam e falam sem parar, sobre coisas banais que deveriam ser discutidas no dia a dia.

Como os adultos podem ser tão cruéis?

Não entendo como eles ignoram o fato de que aqui há somente poucas horas iremos enterrar mais um de nossa família, o cara que mantia tudo isso limpo, todos nós juntos.

Parece que eles esqueceram que estamos indo para um enterro, pois vejo meus primos menores correndo sem camisa pela sala e os mais velhos fumando, pela janela. Todos vestidos de preto, é claro, e é só isso o que faz parecer que eles se lembram do motivo de estarem aqui.

Mas eu sabia que meu pai não queria isso, não queria todos de preto, ou fingindo que se importam de alguma forma comigo ou com a minha mãe.

Por isso, estou usando um vestidinho branco, com desenhos de florzinhas coloridas, e um rabo de cavalo, preso com um fitilho e um laço, com minha franja pro lado.

Papai gostava que eu ficasse bonita, ele dizia que eu era a sua princesinha. Também me contou no hospital que, quando sua hora chegasse, ele não queria me ver triste, mas sim, como a sua princesa, a pequena sapeca que sempre fui.

Mas como ser a princesa dele, se ele não está aqui? Como continuar a ser eu mesma, se a única pessoa que realmente me aceita, nunca mais vai me ver assim? Como vou viver sem meu pai?

Sempre me perguntei o que faria quando esse momento chegasse, mas, para mim, ele era só um pesadelo perdido no meio da minha imaginação, como se fosse um animal espreitando e esperando o momento ideal para atacar.

Recusei quando minha tia Lucinda falou para eu entrar no carro, não, nunca mais eu entraria em um negócio daqueles. E graças à Mãe, minha mãe interveio antes dela começar a cacarejar sobre eu ser mimada demais, e coisas do tipo.

Então, mamãe e eu fomos caminhando para o velório, em um completo silêncio, tão vazio que dava para ouvir um alfinete caindo se você prestaste bastante atenção.

Não lembro exatamente como e quando chegamos ao cemitério. Só lembro-me de ser abraçada por praticamente todas as pessoas desconhecidas que já estavam ali, dizendo coisas que eu não conseguia entender na época. "Que Deus fora misericordioso com o meu pai, que tirou ele de mim agora para ele não sofrer com a quimioterapia depois", mas Deus não era bom? Então por que ele tirou o meu pai de mim? Ou pior, por que o meu pai tinha que ter aquele sentimento ruim, que a mamãe levava ele sempre para o hospital quando a coisa ficava realmente feia? Se Deus era tão misericordioso, por que tirou a única coisa que era preciosa para mim?

Não consegui entender quando o padre começou a rezar, dizendo que meu pai estava em um lugar melhor agora. Aquele cara era o meu pai, o melhor lugar para ele estar agora era comigo, sua filha!

Também não entendi quando mamãe falou para eu dar adeus ao meu pai, nem quando os caras vieram e fecharam ele dentro daquela caixa enorme, como ele iria sair dali para ir chamar os monstros coloridos para brincarem comigo? Será que eu nunca mais veria o meu melhor amigo, o monstro preto, porque o meu pai não conseguiria chamá-lo?

Comecei a tremer quando abaixaram a caixa de meu pai em um buraco tão fundo que era difícil ver onde ele estava. Ele iria ser enterrado? Mas não ia faltar ar? Papai nunca gostou de lugares apertados, não consigo imaginar como está sendo difícil para ele ficar ali parado.

Papai dizia que eu era a sua rapozinha, pois em nosso livro favorito, o pequeno príncipe, tinha um amigo inseparável, que estava com ele em todas as suas aventuras. Queria poder acompanhá-lo nessa também, mas mamãe disse para eu nunca mais falar isso em voz alta, não entendo o porquê, se papai morreu, por que eu não posso morrer também? Assim ficamos os dois juntos para sempre, oras!

Quase me joguei no chão ao ver que estavam de fato fechando aquele buraco. Se o papai não conseguisse sair daqui antes, é agora mesmo que não consegue.

Choros e lástimas eram ouvidos atrás de mim. Por que essas pessoas não estavam tirando-o dali? Não gostei nada de saber que essas pessoas estavam aqui. Esse momento era só meu, se elas não queriam ajudá-lo, por que se propuseram a vir?

Então jogaram o último montinho de terra. As pessoas começaram a se despersar e minha mãe até tentou me puxar, mas não conseguiu, pois eu não conseguia andar, estava paralisada, parecia até morta, mas minha respiração me enganava, e estava tão rápida que até causava falta de ar se eu não tomasse cuidado.

Como se diz adeus à alguém que sempre esteve comigo durante toda a minha vida? Como se diz adeus à alguém que me deu meu nome? Como se diz adeus à alguém que me deu até a cor de seus próprios olhos?

Não dá, não é algo que alguém entende, que alguém consegue fazer. Então, só vou ficar parada mais um pouco aqui, enquanto nenhum dos meus tios vem me agarrar para me tirar a força dali, pois mamãe não aguenta mais esperar.

Olho uma última vez para o buraco no chão, agora já coberto pela terra, e com o coração na mão, desejo com todo o meu ser, para morrer, pois assim, eu poderia ficar junto ao meu pai por toda a eternidade.

A Corte dos SonhadoresOnde histórias criam vida. Descubra agora