06 - Confissões e resoluções

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As crianças corriam e gritavam, tentando desviar da bola de água. O sol caminhava para o centro do firmamento, e a bagunça dos infantes era enorme. Dois times revezavam-se no domínio de uma pequena quantidade de água, a "bola". Gestos eram feitos e a bola voava em direção ao time adversário, e se alguém não conseguisse desviar ou rebater a esfera a tempo, molhando-se, teria que sair do jogo. A brincadeira tinha um nome inusitado, mas que a descrevia com certa acuidade: escaldada.

Toni estava maravilhado com a habilidade dos pequenos. Naquele lugar, qualquer pessoa manipulava a água através de magia. Possuíam uma aptidão inata. Nenhum esforço era empregado na técnica, e até parecia banalizar a coisa toda, como se fosse realmente uma brincadeira de criança.

Um garotinho, com aparência de 10 anos, de pele extremamente vermelha, destacou-se do grupo e aproximou-se de Toni.

- E aí, tio, tá melhor? Muito legal essa sua perna!

- Quer parar com esse negócio de tio? Eu poderia ser seu irmão!

- Mas o tio tem vinte e dois anos, é muito velho! Eu queria uma perna igual a sua.

- Vai dormir, Araí! E eu garanto, você não quer uma perna como a minha, não. Volta lá pro seu joguinho.

- Não quer jogar, tio?

- Eu não sei jogar a água pra cá e pra lá, como vocês.

- Mas é a coisa mais fácil do mundo! Vem cá que eu te mostro...

Aquele era o primeiro dia que Toni se punha de pé desde que chegara a Rio Contrário, há 15 dias. Ele não só não conseguiu manifestar a perna por todo esse tempo, como foi acometido por uma crise. Mal conseguia mover os braços e a perna direita. O corpo inteiro estava dormente e cansava-se logo, com pouquíssimos movimentos.

Assim que chegaram, um homem chamado Gerson correu para atender Irene com toda a deferência e solicitude, e esta pediu que ele providenciasse um lugar onde os irmãos pudessem repousar.

Desta forma, eles permaneceram na casa do senhor Afonso, o melhor curandeiro da vila, pai de Araí. Letícia, sua esposa e mãe do menino, alternava com o marido os turnos de cuidado com o paciente. Ela pertencia a um povo que habitava o extremo sul de Novea, chamado Rubie. Sua principal característica era a pele muito corada, praticamente vermelha. Araí tinha puxado a cor da mãe. Como nunca deixaram sua pequena vila, os irmãos jamais tinham visto um Rubie. O tom da cútis da anfitriã lhes parecia muito exótico. Ren afeiçoou-se muito ao casal e seu filho, que demonstravam um interesse genuíno em ajudar.

Foi o tal Gerson quem não lhes despertou simpatia. Foram informados de que o homem era assistente pessoal de Irene e que havia solicitado permissão para permanecer na vila há menos de seis meses. Estava sempre entrando e saindo da residência do casal, querendo saber se poderia ajudar de alguma forma, trazendo algum remédio que dizia ser a solução ou dando indicações do melhor tratamento a ser utilizado. Era alto e magricela, com aparência de uns quarenta anos. Seu cabelo curto, metodicamente penteado para trás, lhe dava um ar de almofadinha arrogante. Para Toni, lembrava uma pessoa doente por limpeza. Olhando atentamente, o rapaz da perna de magia pôde notar claramente dois focos de luz oriundos de seu peito. A irmã havia lhe contado a conversa com Irene. Omag. Dois corações de magia.

O casal declinava da ajuda educadamente, e os irmãos se sentiam gratos por isso. Gerson parecia agir assim apenas para agradar alguém, e não por altruísmo verdadeiro. Havia um que de falsidade em seus gestos, ironia em suas palavras. Todos percebiam, mas fingiam que não enxergavam.

- Dizem que o velho Gerson é apaixonado pela Mestra Irene, e sempre faz de tudo para chamar-lhe a atenção.

Toni, ainda acamado na ocasião deste diálogo, achou engraçada a situação narrada por Letícia. Ren achou mais cômico o fato de alguém chamar Irene de "mestra".

Perna de MagiaOnde histórias criam vida. Descubra agora