16 - Pacto, loucura e júbilo

1.9K 185 46
                                    

Dois dias se passaram desde a partida - quase fuga - de Irene. Ren poderia ter agido calma e racionalmente para manter algum tipo de comunicação com a mulher, mas como sempre, o seu péssimo gênio falara mais alto. Estava incomodada de ficar sozinha com aqueles terríveis elemantais, e preocupada porque seu irmão não voltava a si. Também não sabia mais o que esperar da mulher ondina, e aquilo a deixava aflita. Não era uma boa julgadora do caráter alheio.

Além de tudo, se sentia culpada. Apenas ela sabia como estava cansada de cuidar do irmão. Não que lhe desejasse o mal, nunca. Amava-o. Era seu amigo, confidente. Viviam juntos desde que ela se conhecia por gente, o único homem que ela realmente permitia a aproximação.

Quando ele entrava naquele estado letárgico, braços e perna tão rígidos que mal podia andar, ela às vezes se pegava imaginando como seria se tudo aquilo acabasse de uma vez. O coma induzido em que ele se encontrava reforçava aquele pensamento. E se chegasse o tempo em que Toni não pudesse mais se mover, tão doente que estaria, e ficasse exatamente como estava agora? Tentava visualizar tudo findando, chegando a um termo. Se Toni não existisse, se Toni não fosse seu irmão... Se Toni morresse...

E então ela sacudia firmemente a cabeça, dando tapas de reprovação nas próprias bochechas. Ela estava sendo egoísta e se envergonhava disso. Só queria o velho irmão saudável de volta, mas aquele desejo parecia tão distante, tão vago. Tinha consciência do quanto seus pensamentos eram repugnantes, seus sentimentos mesquinhos. Mas a exaustão psicológica ocupava toda sua mente.

Continuava junto ao irmão, que estava sendo mantido em sua cabine, dentro de Newcomen. Ainda possuíam muitas provisões, e Ren preparou qualquer coisa que pudesse descer por sua garganta sem causar-lhe ânsias. Comeu apenas metade do prato e o largara sobre a amurada, onde encontrava-se debruçada, a observar a Floresta Flamejante. O sol deixava um rastro púrpura no céu, com belas nuances de dourado. Ao leste, só o azul intenso da noite podia ser avistado. As copas das árvores encontravam-se em seu estado natural. Os elementais, quietos em seu lar, não realizavam o seu espetáculo naquele momento. Mesmo diante de um belo crepúsculo, o ânimo de Ren não se alterou. Na verdade, ele parecia afundar junto com o astro, trazendo as trevas.

Até mesmo Puppet notava o ambiente pesado e limitava-se a flutuar a uma distância respeitosa da dona, mantendo extremo silêncio.

Ren bufou e esticou a mão para pegar o prato e jogá-lo junto com o restante da louça suja, quando uma luz ligeira invadiu seu campo de visão, vinda da parte de baixo do navio, que flutuava a poucos metros do chão. Em um segundo aquele fogo fátuo materializou-se diante dela.

Uma pequena flamine estacou no chão de madeira, a cabeça minúscula inclinada para o lado, observando.

Ren já a conhecia. Representando os flamines, ela sempre subia a bordo de Newcomen para verificar se os irmãos estavam bem e necessitavam de algo. A jovem tinha que reconhecer que, apesar do receio que eles lhe causaram no início, os elementais eram muito prestativos. Ela puxou pela memória, tentando lembrar o nome daquele ser de fogo. Flâmula. Sim, era isso. Bem óbvio, na verdade.

Flâmula parecia bem curiosa a respeito deles. Ren desconfiava que era ela própria a mais analisada. Por vezes a pequena elemental a acompanhava para averiguar o estado de Toni, e nessas horas ela sentia o minucioso escrutínio sobre si. Quando se voltava para a flamine, a sensação desaparecia, mas se sentia observada o tempo todo.

As duas ficaram ali em pé, perto da amurada, se observando em silêncio por alguns instantes. Ren estava admirando-a. Impossível não fazer isso, por mais que já tivesse se acostumado à sua presença. Tão pequenina que mal alcançava a altura de seu queixo, mas com vigor e energia tão intensos quanto de qualquer outro flamine.

Perna de MagiaOnde histórias criam vida. Descubra agora