A poeira das nuvens e o pardalzinho

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Eu sabia que iria nevar

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Eu sabia que iria nevar.

Tenho algum problema com cheiros. Não um problema real, desses verdade. Me expressei mal.

Tenho poucas obsessões e essa é uma delas. A neve. Cheiros. E o cheiro da neve.

Rosana diz que a obsessão é uma coisa poderosa e imensa, capaz de deixar qualquer amalucado à beira do abismo da loucura.

Quem é Rosana? Uma maluca, vos asseguro.

Tudo está esbranquiçado e frio.

Hoje é cinco de dezembro. Está cedo demais para o inverno se empossar da paisagem, mas eu senti o cheiro de gelo pela manhã, e antes do entardecer a poeira das nuvens nos alcançou.

Nem os meteorologistas mais sabidões ousariam garantir, mas eu sabia que nevaria, e não ligo se ninguém acredita em mim. Eu não entendo. Por que nunca acreditam em mim?

De onde estou, no jardim dos fundos do castelo, deitada num banco de pedra ornamentada, assisto os flocos de gelo flutuarem entre as estrelas respingadas pela escuridão anil e suspensa, antes de senti-los acariciar a minha pele.

Parece uma pintura viva.

Com as mãos para o alto, traço uma linha invisível com o dedo indicador, ligando os pontinhos brilhantes numa tentativa despretensiosa de formar diversos paralelepípedos.

Estou congelando.

Quase não sinto o meu nariz, mas ainda consigo ver cada respiração que dou ganhando a forma de uma neblina fraquinha.

Devo estar por um triz de perder a minha mão. Não deveria ter feito bolotas de neve para acertar o Fred, meu irmão caçula.

Especialmente por estar usando essas luvas de cetim. Elas estão gélidas e encharcadas.
Não pensei muito no que viria em seguida, e eu não sou nenhuma anta, uma parte de mim sabia exatamente o que poderia acontecer. Ela só não deu a mínima.

Agora, as únicas coisas me aquecendo são as várias camadas de um vestido horroroso, e — Deus não permita que alguém descubra minha breve consideração de agradecimento —, o instrumento de tortura envolvendo a minha cintura chamado de corpete.

Tem sido uma experiência curiosa. Apesar do frio estar obliterando a maior parte dos meus sentidos e a sensação de dormência se estender por cada fragmento do meu corpo, me sinto melhor do que certamente estaria se estivesse dentro do palácio.

Está silencioso aqui. Não de modo literal, consigo ouvir os instrumentos da orquestra.

Me refiro a pessoas zumbindo nos meus ouvidos. Era tudo o que eu não queria, e o que eu quero nunca importa.

Remexo o meu corpo para sentir os meus ombros — Dois — e isso é o suficiente para que eu sinta mais um dos meus maiores incômodos.

Semana passada larguei o balé. Eu culpo os prendedores de cabelo.

Onde se Escondem as Causas Perdidas - 01Onde histórias criam vida. Descubra agora