Alguma coisa tinha de dar certo. Alguma maldita coisa tinha de dar certo. Essa era a frase que Jerry proferia mentalmente. Assistia sem acreditar aos bombeiros dando fim a grande fogueira que um dia, fora a sua casa. Sabia que cedo ou tarde a fiação antiga traria problemas, mas, nunca imaginara um incêndio naquelas proporções. Os pilares resumiam-se a tocos de carvão, os móveis e cômodos que lhe pertenceram, agora não mais que lembranças. Estava divido entre chorar e rir, o desespero tomando conta, enquanto o pouco restante de seu lar virava cinzas e mais cinzas. Bufou, passando as mãos pelos longos fios claros, sentando na guia da calçada e contemplando sua maré de azar. O único consolo, saber que o álbum de família com fotografias de sua mãe e avó, fora emprestado tempos antes para a irmã. Que se fodesse o resto. Instrumentos e as demais coisas materiais compraria de novo. Seu bem mais precioso eram as imagens, as memórias tão docemente dolorosas. Perdera tudo, tirando a carteira e o maço de cigarros no bolso do casaco. Sem dar a mínima para o perigo acendeu um, necessitando da nicotina. Tremia levemente, perdido, confuso e sozinho.
- Porra... – Xingou num sussurro arrastado, descansando a cabeça nos joelhos e sentindo uma exaustão inédita, que o faria dormir ali mesmo e não desejar mais acordar.
- Sr. Cantrell? – Alguém lhe chamou com certa formalidade.
- Oi. – Foi tudo o que o loiro respondeu, virando a face e mirando o rapaz com uniforme dos bombeiros.
- Conseguimos conter o fogo, porém, perda total. Sinto muito. – O oficial relatou, compadecido. Muitas vezes antes enfrentou a situação, sabendo o quão difícil era.
- Pelo menos não houve feridos ou outra casa atingida. – Fulton deu de ombros, sorrindo fraco. Tinha de ver as coisas pelo ângulo bom.
- Por falar nisso, preciso que me acompanhe. – O bombeiro informou, estendendo a mão. – Inalou fumaça, senhor. Precisamos examiná-lo.
- Estou bem. – Jerry rebateu sem ânimo algum. – Apenas me sujei de fuligem.
- É necessário. Há substâncias inaladas que apresentam sintomas tardios. – O homem continuou. – Poderá ligar para alguém no hospital, explicar o que ocorreu.
- Tudo bem. – O loiro concordou, vencido pelo cansaço.
Não tinha motivos para permanecer ali. Levantou-se com lentidão, sentindo as costas protestarem. Suspirou alto, tossindo em seguida e quase rindo com o ato. Se colocou ao encalço do outro, rumando até a ambulância mais à frente. Lá, paramédicos o atenderam e sem demora fora conduzido ao complexo hospitalar. Durante o trajeto, sua mente trabalhava arduamente em uma solução, uma saída para sua vida de merda. O problema passando longe do dinheiro. O sucesso de sua banda deixando-o confortável no âmbito financeiro. Poderia comprar uma casa nova ou reconstruir a antiga, no entanto, todos aqueles pensamentos pareciam distantes, incompletos. O lar incendiado continha a medida certa de conforto e simplicidade, coisa que não encontraria facilmente em outro lugar. Não possuía inúmeros carros ou gana de estar numa propriedade gigantesca, perdendo-se entre cômodos frios e incógnitos. O jeito, era procurar algum apartamento e recomeçar uma vez mais, como sempre fizera. Como sempre faria, se preciso fosse.
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TEMPOS DEPOIS...
O outono começava a dar as caras, trazendo consigo os ventos gélidos e a queda das copas. Rastelos eram vistos comumente nas entradas das residências, parques e afins, onde amontoados de folhas secas e avermelhadas se transformavam em ótimos esconderijos ou amortecedores de saltos arriscados das árvores baixas dos jardins. O norte do globo tornava-se um imenso filtro sépia, agradando a maioria dos habitantes deliciados com a estação de transição, que juntamente a primavera, compunham o perfeito equilíbrio de calor e frio moderados, sem extremismos climáticos. E foi num dia outonal, tão típico quanto tantos outros, que algo relevante se iniciara. Nada de muito elaborado, pois, o destino é criterioso e discreto na maioria dos casos que conduz, optando por uma abordagem que beira o acaso, o tropeçar em algo inesperado. É nesse cenário mágico que sentimentos podem ser descobertos e gratamente desfrutados, como uma bela trufa recheada com licor de cereja, explodindo na língua e inundando as papilas com o mais intenso sabor. O prazer que percorre os terminais nervosos pode ser comparado as sensações da paixão, da satisfação luxuriosa que nós, seres humanos, somos subjugados.
Agora imaginem uma manhã preguiçosa, onde a garoa fina e manhosa caía sobre a encantadora Seattle, um pontinho no canto do mapa. Bem, esse era o pensamento de Ramona ao encarar a janela do apartamento. Soprou a caneca com chá fumegante, conduzindo a fumaça para o vidro e o embaçando um pouco mais. Sorriu levemente, sentindo que fazer parte daquela cidade era a melhor coisa. Coçou os olhos, o sono deixando a visão um tanto quanto turva e a cabeça dolorida. Trabalhar na noite não era fácil. Claramente havia os prós, entretanto, em determinado momento tudo parecia sem graça, maçante. Riu internamente, achando engraçado toda a reflexão. Adorava a vida noturna e mesmo a exaurindo em determinados aspectos, mantinha-a em estima.
Foi até a torradeira, pegando as fatias quentes e crocantes de pão e depositando num prato. Era seu dia de folga, de sossego, de tranquilidade. Pelo menos sendo o que desejava. O cenho franziu-se numa profunda careta e soltou um palavrão bem direcionado, outra vez o novo vizinho perturbava seu sagrado descanso. Sabia que era semana e que a maioria das pessoas no prédio estavam trabalhando, tendo empregos normais em escritórios monótonos e claustrofóbicos, porém, ainda era filha de Deus e merecia uma pausa. O problema realmente sendo não aguentar mais a canção tocada, os mesmos acordes repetidas e repetidas vezes. Não era burra, sabia que provavelmente ele estaria ensaiando ou compondo algo, pois a cena musical da cidade estava no auge, com dezenas de bandas galgando o sonho do estrelato. Os de fora denominaram como “grunge” tal som, que espalhou-se com facilidade aos quatro quantos do globo. Não abominava o estilo, pelo contrário, era até um tanto envolvida no meio. Povoava o mundo musical também, se misturando com todo o tipo de gente. Viu o Nirvana tocar em espeluncas caindo aos pedaços, o Pearl Jam surgir de um trágico percalço da vida, o Soundgarden ditar sua marca na região. Seattle era uma cidade grande com alma de interior, onde todo mundo alguma vez havia se trombado ou trombaria e as notícias corriam rápido.
- Que caralho... – Resmungou quando o volume aumentou, fazendo o chão vibrar. Sem muita paciência, pegou a velha vassoura e bateu algumas vezes no piso, na vã tentativa de fazer o sujeito entender o incômodo causado. Para sua surpresa, tudo ficou mais alto, uma nítida provocação.
Não iria deixar barato. Olhou ao redor procurando o estimado taco de baseball do pai, um presente guardado desde a infância. Pegou-o num canto da sala, voltando ao centro do cômodo e batendo com mais força no assoalho, descontando toda a irritação. Na terceira investida um barulho esquisito chegou aos ouvidos, contudo, o ignorou completamente, pensando ser banal. Desferiu outra pancada no chão e outra e mais outra, gostando da emoção proporcionada. Nem era sobre o vizinho mais a razão de seu descontrole. Adorava extravasar as tensões acumuladas e aquilo a fazia ter sensações maravilhosas de satisfação. Socar algo era sempre prazeroso e recompensador.
Deveria ser a décima porrada quando ao encostar o objeto pesado no lajeado, outro barulho fez-se presente, mais alto e assustador. Um rangido estranho seguido do que parecia algo rachando. Afastou-se alarmada, retirando o tapete fino que cobria o local e constatando aliviada que não havia nada errado. Ainda melhor foi a desistência do outro, acabando com a barulheira impertinente. Sorriu vitoriosa, enquanto se encaminhava a guardar o pedaço de madeira maciça. Por hora, teria sua cobiçada e adorada paz. Ledo engano. Fora somente encostar o taco na parede e o barulho estranho voltar mais alto e preocupante. Não soube explicar a merda que aconteceu após, chocada demais com o buraco que se abrira no chão onde segundos antes, estava.
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Something's Gotta Turn Out Right
FanfictionJerry se sentia azarado. Nada estava dando certo em sua vida e pelo jeito, a maré não mudaria tão cedo. Era o que pensava até conhecer Ramona, a vizinha do apartamento de cima. Será que a convivência com ela faria as coisa darem finalmente certo?